MEMÓRIAS DOS TEMPOS SALAZARENTOS


No dia 26 de Março de 1965, em plena vigência do regime salazarista puro e duro, um deputado salazarista à Assembleia Nacional, Dr. António Marques Fernandes, certamente depois d um almoço bem regado, pronunciou naquela Assembleia um discurso em que apelava aos salazaristas que fossem mais activos e tivessem mais espírito de sacrifício. Certamente influenciado pelo bem regado almoço, desatou a criticar o comodismo dos situacionistas, comparando-o com o espírito de sacrifício dos comunistas que lutavam pela sua causa abenegadamente, arrostando com todas as consequências daí derivadas – prisão, etc. Chegou a dizer que “nós ficámos com o Cristo e eles ficaram com a Cruz”. Isto é, sem querer, fez um eloquente elogio aos comunistas.

A Censura, certamente por se tratar de um discurso de um deputado à AN, nem sequer deve ter lido e o certo é que o discurso veio reproduzido nos jornais, designadamente no Jornal de Notícias.

Nessa altura, a revista socialista Seara Nova tinha uma secção intitulada “Factos e Documentos”, em que publicava textos disparatados dos salazaristas, designadamente passos dos discursos do então presidente Américo Tomás.

Ao ler o discurso, eu e alguns colegas – José Gomes, que veio a ser actor de teatro e de telenovelas e infelizmente já falecido, José Guilherme Stuart d’Almeida Coutinho, também prematuramente falecido, José Quitério, hoje crítico gastronómico do Expresso, e Marcelo Correia Ribeiro, já reformado mas democrata indefectível e ainda bem activo -, tivemos a ingenuidade de recortar o texto e enviá-lo para a Seara Nova, acompanhado de uma carta manuscrita aqui reproduzida em forma dactilografada pela PIDE.

Mais ingenuamente ainda, pusemos como remetente da carta “Café-Restaurante Mandarim - Coimbra”.

É evidente que tal carta nunca chegou ao destino. Certamente alarmados com os nomes do remetente e da destinatária, os esbirros da PIDE em serviço nos CTT apreenderam-na. O diligente agente da PIDE que tomou conta da “ocorrência” teve o cuidado de sublinhar a expressão “prosa parlamentar” e fazer-lhe a seguinte anotação: “Trata-se do texto do discurso proferido na Assembleia Nacional pelo Deputado Dr. António Marques Fernandes, em Março de 1965, através do qual enalteceu as qualidades dos comunistas.”

Tal carta repousa hoje nos arquivos da Torre do Tombo, onde fui “desenterrá-la”, pois constava do meu dossier na PIDE.

Comentários

Peço desculpa pelo tamanho inadequado da imagem,mas foi o melhor que consegui fazer...
AHP:

A imagem tem o tamanho adequado à infâmia da PIDE e é um testemunho eloquente da ditadura fascista.

Os «factos e documentos» tiveram a colaboração do Nuno Brederode Santos, filho de um honrado democrata que foi presidente do PSD no tempo em que o partido não se envergonhava dos cravos - Nuno Rodrigues dos Santos.

O deputado da União Nacional era da Carrapichana (Celorico da Beira) e quis o destino que um filho desse Conservador do Registo Civil fosse meu colega de turma no liceu da Guarda. Fui amigo do Aníbal e conheci o pai, um salazarista militante como era obrigatório.

A carta que aqui fica como património do Ponte Europa é mais um testemunho da violação da correspondência que a PIDE fazia.
José Teles disse…
É verdade, como eles interceptavam a correspondência! Com que despudor! Lembro-me que em 63 ou 64, na Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, estávamos obrigados a votar uma alteração dos estatutos, para a qual a entidade homologadora, o Ministro, exigia a comparência de um número altíssimo de sócios na Assembleia Geral. Era uma tarefa quase impossível sobretudo porque havia muitos sócios que eram alunos voluntários, trabalhavam, e só de longe a longe passavam pela Faculdade. Mobilizámo-nos, tentámos telefonar a toda a gente, mas era difícil encontrar em casa muitos deles, fosse a que horas fosse. Decidimos enviar cartas, fechadas, em envelopes normais e sem remetente, para que os Pides dos CTT não as descobrissem. De notar que estávamos a convocar uma assembleia legal para legalmente alterar um artigo ou dois dos estatutos, que nos tinham sido abusivamente impostos pelo Regime depois da crise de 62. Como última precaução - foi ideia minha e supunha que brilhante! - dividimos as cartas a enviar entre nós e fomos espalhá-las a várias horas por todos os marcos do correio que encontrávamos, da Cidade Universitária ao Saldanha, convencidos que com essa dispersão conseguíamos que ao menos algumas passariam o crivo que supúnhamos existir e chegariam aos destinatários. Pois não chegaram. Gastámos um dinheirão perdemos um tempo danado e os estupores da polícia dos CTT detectaram, apreenderam e destruíram cartas legalíssimas, entre uma Associação e os seus sócios, a avisar do interesse e necessidade de virem a uma assembleia geral. Nem assim. Apesar de todas as sabotagens, conseguimos reunir no dia e hora aprazados o número necessário de sócios. E as alterações foram discutidas e votadas. E passámo-nos a reger por elas, apesar da homologação que ficou pendente e dos gorilas que foram recrutados. O que ao nosso nível representou uma derrota humilhante do Regime e de quem o apoiava na Faculdade. Os quais não eram muitos, estiveram ao lado dos gorilas e dos padrinhos que tinham no Governo. Mas hoje andam por aí armados em líderes e comentadores de sucesso, a gabar-se do contrário.
José Teles:

Obrigado por mais esse testemunho que aqui fica no Ponte Europa.

Os que vivemos esses tempos julgamos que os nossos testemunhos são pouco valiosos e, às vezesz, são únicos.
José Teles disse…
Carlos Esperança, ahp,
retomei este vosso post no meu blogue
http://aboiada.blogspot.com. Copiei mesmo a vossa imagem e o vosso título, espero que não se importem, sou caloiro nestas coisas dos blogues. E o título vou retomá-lo em próximas evocações, entre aspas, da próxima vez, prometo.
Saudações "estudantis"!
José Teles:

O Ponte Europa é que a gradece a transcrição do post de A.H.P..

Basta um link para designar a origem.

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