O Ti António Álvaro (Crónica)

O guitarrista (Picasso)
Foram tempos negros os do pós-guerra na Miuzela do Côa como, aliás, por todo o país. A sobrevivência era difícil, o dinheiro frequentemente substituído pela troca directa de géneros e moedas de vinte e cinco tostões e de cinco escudos apareciam em falsificações que imitavam a caravela e a liga de prata. As senhas de racionamento dos indigentes eram negociadas na candonga.

Nas tabernas, modestas precursoras de grandes superfícies, vendia-se, além do vinho e da aguardente, mercearia, sal, bacalhau, toucinho, petróleo e outros produtos, secos e molhados.
Escasseava tudo menos o vinho e o azeite, o primeiro por ser de produção local e o segundo, de elevada acidez, por vir de contrabando, em odres, no dorso de machos que fugiam aos tiros dos carabineiros e iludiam as esperas dos guardas portugueses. Os pregos eram falsificados, em cada dez só dois ou três é que espetavam e as caixas de 40 fósforos traziam pouco mais de trinta e só metade acendiam. A vida era difícil, disse-o no começo e já o repito.

Taberneiros ambulantes iam pelos mercados e feiras com pão espanhol, trigo da Miuzela, vinho, pirolitos, peixes do rio, torresmos e postas de bacalhau frito. Padeiros iam em busca de lenha duas léguas em redor para laboração dos fornos. A pesca e a caça completavam a agricultura de subsistência. O contrabando de seda, alpercatas, bombazina, bolachas, pão, elástico e outras miudezas ajudavam à sobrevivência. O albardeiro, o ferrador, o latoeiro, o alfaiate, o moleiro e o barbeiro faziam pela vida no exercício dos misteres que todos juntavam ao amanho da terra e à aplicação doutros saberes. O ferrador fazia sangrias e queimava o nervo ciático, um pastor endireitava a espinhela caída e outro compunha os ossos deslocados e reduzia fracturas, mulheres de idade recitavam ladainhas para atalhar o sol e reduzir febrões. O barbeiro cuspia no pincel para fazer a barba aos fregueses de fora, por deferência, que aos da terra podia cuspir directamente, antes de passar o sabão e puxar da navalha. Para o carbúnculo o cabo incandescente de um garfo era o remédio, a sangue frio, que podia matar da cura. E usavam-se sanguessugas para várias enfermidades.

Nas fontes o raio da água nascia escassa e inquinada, favorável à entrega prematura de almas ao Criador, sobretudo de crianças, perante a impotência dos pais. Uma mulher, mãe de seis filhos vivos e de quatro anjinhos, explicava que se criavam poucos, conformada com a pesada maquia que nesse tempo soía Deus cobrar na infância, resignada a ter muitos para lhe sobejarem alguns. No estio a primeira a secar era a fonte Barroco, depois a das Mijas Velhas e só a fonte do Vale se aguentava a encher os cântaros à cadência a que ia nascendo a água, cada vez mais lenta, à medida que o Verão avançava, até às primeiras chuvas que invertiam o ritmo.

Recordo o Medo, caçador profissional, marcado pelas bexigas e pela fome e o Domingos Neto, pescador, que guardava no campo pimentos, castanhas, uvas, nozes e maçãs, conservados longos meses por saberes não revelados e obtidos por métodos expeditos nas hortas de honrados agricultores que lhe levavam a mal a desfaçatez e a necessidade. O Zé Amaro era apicultor, o Gigante, com o seu metro e meio, era pastor, e o Lecas, trolha que viera dos lados do Porto, artista solicitado, assentava tijolos e caiava paredes em meia dúzia de concelhos.

O padre António, da Ruvina, concelho do Sabugal, de batina sebenta e humor lábil, exercia o múnus com sermões mais persuasivos sobre as penas do Inferno do que os dos frades que, uma vez por ano, se lhe substituíam com a obrigação de apavorar os pecadores com os suplícios que lhes reservavam depois da morte.

O terror reiterado e a reincidência nas ameaças atenuavam o temor e os paroquianos teimavam em viver e encharcar-se em vinho, isto é, faziam por sobreviver.

Por altura das eleições de Humberto Delgado o padre advertiu os crentes de que era pecado mortal votar nesse inimigo da pátria, comunista e maçónico. Mandou votar os paroquianos de acordo com a vontade do homem que a providência encarregara de governar Portugal, desígnio de que desconfiava o Ti António Álvaro, o homem mais fino que conheci, o mais corajoso e com maior amor à liberdade. Foi por isso que resolveu trocar o voto que a mulher recebera da União Nacional para depositar na urna. E foi com ele trocado que acompanhou no desígnio a Belmira e a Aninha Aragão, catequistas, celibatárias e vizinhas. No caminho indagou a primeira, deixa cá ver Beatriz se o teu voto é igual ao meu, toma lá Belmira, mulher que estás excomungada, vais votar no diabo, disseram à uma as duas, ai o corno do meu homem que me enganou, gritou espavorida a Beatriz após a denúncia e o perigo iminente de acção torpe. Nenhuma queria acreditar em tal descaro, se bem que as não espantasse um homem que fizera um filho ao Augusto Capas, que é como quem diz, à mulher dele, além de três à própria e outros de que se murmurava em paróquias próximas, que as apelidava de beatas, que preferia a caça à santa missa e que se tinha envolvido em troca epistolar com o abade. Abro aqui um parêntesis para falar dessa correspondência, metida pelos próprios debaixo das respectivas portas que um pequeno largo separava. Quem começou foi o padre ao escrever-lhe, admoestando-o, que não devia abrir a taberna aos domingos, por ser dia do Senhor, para que os homens substituíssem a aguardente pela missa e as cartas espanholas pela oração. Mas, em vez de conformar-se o réprobo, retorquiu-lhe com firmeza noutra missiva, que se metesse na sua vida, que nunca o tinha repreendido por mandar tocar o sino a desoras, que nunca lhe tinha dito como devia tratar da vida dele, padre, não viesse ele dizer-lhe como devia tratar da sua, taberneiro e caçador, homem livre, a quem não intimidavam as posturas municipais, os decretos ou as bulas. Mereceu a santa reprimenda com que o execrou o abade no domingo seguinte, durante a missa, confiado na impunidade que o local e a ausência do atingido lhe asseguravam, que cara a cara não era homem para tal.

Lá se persignaram as três para exorcizar o pecado, substituíram o voto por outro antes de cumprirem o dever cívico que à Beatriz lhe foi concedido por razões nunca averiguadas, por não ser o voto direito da mulher, a menos que pagasse determinada décima, como era o caso da Belmira e da Aninha, não o dela, por ser casada e os direitos pertencerem ao marido, em conformidade com a tradição, os bons costumes e a lei, direitos, aliás, moderados e perigosos de exercer no candidato errado.

Esse facto irritou profundamente o Ti António Álvaro que as chamou de beatas e outros epítetos que escuso de reproduzir, que os leitores, havendo-os, hão-de imaginar, imprecações que ao tempo e numa terra raiana eram comuns, à semelhança dos espanhóis, mas se tratou de justo desabafo.

António Álvaro sabia onde dormia a lebre em cuja cama a surpreendia com um cacete, onde passaria a raposa para lhe armar os ferros, em que toca se refugiava o coelho que o furão fazia saltar, onde estava um bando de vinte e tal perdizes que, uma a uma, derrubava com espantosa precisão a tiros de escopeta, sucessivamente carregada pela boca com pólvora e chumbo atacados com buchas de jornal, até dizimar o bando, numa légua, a saber sempre onde poisariam as restantes, cada vez em voos mais curtos, exaustas, incapazes de sobreviver à tenacidade, determinação e perícia do predador.

As rixas eram nesse tempo frequentes. O álcool, a rudeza e a precária instrução haviam de ter alguma influência nos comportamentos ásperos.

Um dia, por ter sido insultado na taberna, arremessou um peso de meio quilo, aferido pela Câmara Municipal, e derrubou o provocador. Este teve forças para levantar-se, agarrou na machada que estava à mão para dividir os cabritos que ali se esfolavam e vendiam, transpôs as portas de vaivém e, com ela em riste, disse, da rua, anda cá meu cabrão que já te racho os cornos, e o Ti António Álvaro, que não era homem de levar desaforo para casa, esgueirou-se pela minúscula janela que dava para outra rua, foi milagre passar por ela, apareceu-lhe por trás com um caldeiro que lhe enfiou na cabeça e a que logo saltou o fundo, caldeiro transformado em colete. Caída a machada, logo as lambadas lhe começaram a cair no focinho, bêbado dum raio, filho da puta, o homem a pedir-lhe que o não matasse, os vizinhos a acudirem-lhe e a tirarem-lho das mãos, enquanto outros agarravam estes e achavam que não, que devia dar-lhe mais, que não era boa rês, até que enfim alguém o mete nos eixos, nunca as mãos lhe doam Ti António Álvaro, vossemecê é pequeno mas valente, este gajo estava a pedi-las, isso não é sangue, é vinho, o animal tem de sangrar, precisa de amansar. Lá os separaram e nunca mais o díscolo se atreveu com ele, guardando uma distância prudente sempre que se cruzavam.

Aos 80 anos deixou explodir na mão uma vela de dinamite que, junto ao rio, reservava para uns barbos e bogas. Regressou a casa pelo seu pé, sozinho, dois bons quilómetros, com as pontas decepadas dos dedos arrecadadas num saco de plástico, fazendo um penso com um simples farrapo, deitando-se a seguir, só denunciado pela febre que alertou um filho e lhe chamou o médico.
Havia de viver mais década e meia, com menos dedos e a mesma lucidez, esvaindo-se-lhe a vida como água que se evapora. Devagar. Serenamente. A quatro anos de perfazer um século de vida.

Comentários

zeu s disse…
Parabens caro Esperança, que belo naco de prosa.No seu escrito entrevi muitas das cenas do quotidiano de antanho que saborosamente ouço de meu pai cá em Coimbra e nas frequentes viagens "à terra", a propósito de uma casa, de um terreno, de uma fonte ou outro espaço, e que invariavelmente começam por "olha, sabes, aqui...".
Abraço fraterno
Ricardo Alves disse…
Uma crónica lindíssima.
Um abraço,
Anónimo disse…
sim, senhor
Anónimo disse…
dasse...este gajo deve passar horas ao computador. estranho é que as "picadas" do senhoure esperança aquando das eleições autárquicas tenham parado. e as suas insistências quanto às ditas sondagenms do senhore bitore?
tenham todos vergonha. não conseguem silenciar o incómodo da mentira fácil e do engodo. nem a sua amizade por baptista pode explicar tudo para quem a verdade está acima de tudo, não é ó senhor esperança?
Anónimo disse…
há aqui um qualquer recalcamento muito profundo com os padres, deve ter doído...
1313 disse…
Parabéns pela crónica.
Este é o passado glorioso de Portugal que aprendi e conheço. Feito pela gente humilde e simples, ao invés dos grandes heróis - se calhar, tigres de papel - evocados pelos saudosistas.
Venham mais crónicas ...
Anónimo disse…
Obrigado pelos amáveis comentários.

Esta crónica, à semelhança de outras que já aqui deixei, são recordações antigas que o Jornal do Fundão insiste para que eu publique.

Tenho uma página à minha espera, por amável deferência do Fernando Paulouro, com mais leitores do que os do «Ponte Europa».

Um destes dias conto-vos como um ministro fascista me impediu de escrever em jornais.

Talvez valha a pena para quem não sabe o que foi a ditadura.
Anónimo disse…
Caro conterrâneo é com muito gosto que vejo alguém referir-se à nossa terra nestes termos. teria todo o gosto em obter o seu contacto para trocar-mos umas impressões (goncalvespinto@gmail.com).

cumprimentos
Anónimo disse…
Excellent, love it! » »

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