Quem conhece Jorge Carvalheira?

É uma dessas aves feridas de Abril, uma das que voaram para o exílio a seguir ao 25 de Novembro e foram demitidas das Forças Armadas. No seu caso, da Força Aérea. E voou é uma forma de dizer, saiu como pôde para poupar a pele à vindicta que se anunciava, e que o Grupo dos Nove ajudou a impedir. No regresso lutou pela reintegração e suportou as sucessivas recusas da administração em respeitar e cumprir as determinações legais. Ele, e outros, viveram o calvário das arbitrariedades de quem ganhou estrelas, porque os capitães da revolução lhe abriram os caminhos do poder e do mando. Ainda hoje, passados trinta anos, há processos que aguardam, em gavetas, o despacho meritíssimo que um incerto futuro há-de trazer.

Entretanto licenciou-se em Letras, na Universidade Nova de Lisboa. E leccionou, por gosto e por ofício. Mas vinte anos depois havia de ser reintegrado, e ganhou o direito de voltar a voar, ao menos no papel. E assim levantou voo na literatura, com "O Mensário do Corvo". Reincide agora, em pouco mais de uma centena de páginas, com "As Aves Levantam Contra o Vento", das Edições Quasi. Parece pequeno voo para um escritor, tão avaro nas milhas de palavras escritas, mas tão pródigo na altura a que elevou a prosa. Uma pérola literária.

Mais um velho condiscípulo do Liceu da Guarda a brilhar no firmamento das letras, sem esquecer os voos tornados inúteis por uma guerra condenada:

"De forma que, durante treze anos, a tropa fez das tripas coração, para dar aos políticos dementes de Lisboa o tempo de escreverem o testamento do império.

Mas eles carregavam a maldição da Índia na alma, e passavam a vida a jurar que não haviam de ser a geração da traição. Preferiam a hecatombe dum exército derrotado a afogar-se no mar, ou a galopar sem norte pelo sertão, ao compasso dos tantãs da sanzala.

Foi por isso que a revolução aconteceu." - escreveu Jorge Carvalheira.

Comentários

Luís Queirós disse…
Um livro a não perder, escrito com a cabeça e com o coração. Numa prosa magistral, um testemunho único de um homem viveu o 25 de Abril por dentro! As esperanças, as angústias, as desilusões,as traições!
Uma obra prima para a história!
Anónimo disse…
Jorge Carvalheira brindou-nos, depois de nos oferecer «O Mensário do Corvo», com uma bela peça de literatura, que não será um livro para enfeitar uma estante mas sim para ler com a mente.
As aves que nesta obra fazem voo de longo alcance carregam um retrato da História desta terra, feito de frente, desde que o seu povo foi arrastado, mar fora, sempre em viagens de má sina, até ao regresso da última que durou treze longos e penososs anos. É uma História sem dias nem reis, sem protagonismo de heróis - que as façanhas foram determinadas pela força das circunstâncias ou pelo imperativo irrecusável da honra -, prenhe de tristezas e medos, povoada de incertezas e angústias, entumecida de frustrações e desnganos, onde se patenteia a vileza que os mandantes amiúde intentam, jungindo o povo ao jugo dos seus desígnios oblíquos.
Por estas páginas perpassam as inglórias não contadas na História oficial que nos levou às Índias, aos Brasis, às Áfricas, ao mundo onde pusemos pé à força da espada e a mando da cruz.
Lá está, também, a epopeia dum punhado de homens que, regressados dessa tenebrosa viagem de treze anos, cansados do insulto a que os donos da pátria votou todo um povo, entenderam ser tempo de dizer "basta!" e se atreveram a pôr o pé, agora não em terra alheia, mas na que, por breves instantes da História, foi sua e desse povo escarnecido e, desse modo, responderam aos seus anseios.
Há alguns momentos de glória na História deste país; este é um deles. E o autor soube – e de que maneira! – dar voz a essa História que não se lê nos manuais.
E lá está, ainda, bem retratado, o calvário dos que se sentiram enteados na sua terra e procuraram outras madrastas mais benignas por essas andanças do mundo, fosse para prover à boca ou para iludir a feroz perseguição do algoz que não lhes perdoou a ambição de matar a fome ou a nobreza do seu gesto de rebeldia, honrando o povo de que nasceram, e se sentiram forçados, uns e outros, a sair pela calada da noite. Mas a honra que granjearam, essa, ninguém lha pode usurpar, mesmo que o desconhecimento forçado por malsãos intentos o queira mandar. É isso, também, que estas páginas de escrita sublime nos trazem.
Ler «As Aves Levantam Contra o Vento» é ler uma obra supimpa de literatura, escrita em português que se preza.
Anónimo disse…
Serão poucos os que leram ou ainda lerão o comentário ontem deixado por mim. Apesar disso impõe-se-me corrigir a discordância entre o sujeito e o predicado, como segue: onde se lê «...os donos da pátria votou todo um povo...», deve ler-se, obviamente, «...os donos da pátria votaram todo um povo...».
Pelo erro deixo as minhas desculpas.
Unknown disse…
Lamentavelmente conheço...

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