A ALMA MÁ DE SETSUAN – Isabel Jonet


Há 70 anos, Bertolt Brecht contou-nos a história de três deuses que vieram à Terra à procura de uma alma boa e que encontraram na prostituta Chen Tê, que os acolheu, a alma que procuravam. Foi assim, graças ao encontro de uma única alma boa que os deuses desistiram de acabar com a porcaria cuja criação lhes atribuem.

Com uma tabacaria, a prostituta conseguiu ser esmoler ao mesmo tempo que apareciam os oportunistas que dela se aproveitavam e a exploravam. Acabou por inventar a figura masculina de um alegado primo, Chui Ta, vestindo-se de homem, engrossando a voz e tornando-se má para se livrar dos parasitas. E é nesta alternância dialética entre Chen Tê e Chui Ta, que a peça de Brecht se desenrola.

Diga-se de passagem que Chen Tê, na noite que acolheu os deuses, deixou de atender um cliente para fazer a sua boa ação.

Não sei porque me lembrei hoje desta peça e da personagem principal. Há associações por semelhança, contraste e proximidade, e não sei qual foi a que me trouxe à memória a dramaturgia de Brecht.

Talvez a região da milenária China onde viveu Chen Tê seja no multissecular Portugal a zona de Cascais e as tias que vivem na proximidade da paradisíaca baía se aproximem da versão masculina de Chen Tê.

Isabel Jonet não precisou do balcão de uma tabacaria para socorrer os pobres. Ganhou a presidência do Banco Alimentar contra a Fome para exercer a caridadezinha com um olho na sopa e outro na quantidade que os pobres devoram, porque a barriga de pobre é um buraco que não enche e a sua fome insaciável. Um conjunto de pobres chama-se um bando de porcos, capazes de comerem bifes diários, mastigados com ruído e boca aberta e sem reconhecerem os benfeitores nem terminarem com uma prece ao bom Deus.

Em Portugal não há fome e o Banco Alimentar contra a dita é uma mera instituição para satisfazer uma alma crente e exibir, perante os deuses que andam por aí, que a bondade é apanágio da condição social e a sopa uma marca cristã que precisa de pobres para que as tias ganhem o Paraíso.

Confesso: estimo cada vez mais as prostitutas.

Comentários

andrepereira disse…
A Caridade é um valor fraco, baixo, de fraca densidade ética.
Até aqui, eram só os incréus que se referiam em termos depreciativos à "caridadezinha" burguesa, dizendo que esta era um instrumento para perpetuar - tornando-o um pouco menos insuportável - o sistema de classes e o fosso entre ricos e pobres. Com a vantagem suplementar de ajudar os ricos a (á custa dos pobres) ganhar o Céu.

Mas agora Madame Jonet brindou-nos com uma interpretação autêntica - em linguagem jurídica, "interpretação autêntica" é a que é feita pelo próprio legislador - do conceito beato de "caridade". Afinal, veio confirmar que as coisas são mesmo como os incréus diziam!

A Tia Jonet tem é medo que os malandros dos socialistas acabem com a pobreza, privando-a assim do seu protagonismo mediático e da escada por onde pensa subir para ir sentar-se à mão direita de Deus-Padre!

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