Os ‘novos’ Albergues da Mitra…

É fundamental mudarmos a relação entre o Estado e as instituições sociais, nomeadamente numa altura em que atravessamos uma crise económica e financeira que tem o seu reflexo do ponto de vista social. O Estado tem de olhar para as instituições sociais e perceber que tem de estabelecer com estas instituições e ter uma lógica de verdadeira parceria, porque muitas vezes são estas instituições que conseguem no terreno dar uma responsa social que o Estado deve conseguir contratualizar [com as IPSS]”… link declarações do Ministro Ministro da Solidariedade e da Segurança Social, em Bragança, de visita a uma instituição de apoio social.

“…o ministro Pedro Mota Soares prepara-se também para flexibilizar e desburocratizar a legislação relativa às obras nestas instituições; e, desde que devidamente justificados e autorizados, serão flexibilizados ligeiros desvios face às áreas úteis mínimas previstas como norma…link

Ao ler estas mensagens vem à liça duas intrigantes interrogações:

- Estaremos a caminhar no sentido de desenvolver neste País a política dos ‘albergues’?

- Conhecerão os actuais governantes o historial do escabroso ‘Albergue da Mitra’?

Vamos tentar explicar melhor esta imagem. O Palácio da Mitra, ‘nasceu’ na freguesia de Marvila, junto ao beco do mesmo nome, como residência dos bispos e cardeais de Lisboa desde o séc. XVIII e é consequência de encargo régio (D. João V) contraído com a 'elevação' do arcebispado lisbonense às honras de patriarcado. Foram estas as  funções que desempenhou até ao final da guerra civil liberal (1834) quando, na sequência da separação de poderes, foi integrado na Fazenda Pública. Posteriormente, a designação de ‘palácio da Mitra’ estendeu-se a muitas outras residências episcopais espalhadas pelo País.

Depois de regressar ao património do Estado mudou de mãos várias vezes, tendo inclusive sido a sede de uma fábrica de metalurgia e fundição até que, em 1930, foi adquirido pela Câmara Municipal de Lisboa. A partir dessa aquisição foi transformado no Albergue de Mendicidade de Lisboa e começa aí a história que interessa. Durante o consulado salazarista foi encaminhado para desempenhar funções sociais de acordo com a política da época. Tornou-se um local de acolhimento de ‘desvalidos’ (mendigos, doentes mentais, inadaptados sociais, idosos), ‘excluídos’ (prostitutas e homossexuais) e ‘marginais’ (proxenetas, vadios, sem-abrigo, etc.).

Nasce neste contexto a instituição que ficou conhecida como o ‘Albergue da Mitra’. Na década de 60 foi perdendo ‘clientes’ e viria a ser oficialmente encerrado depois do 25 de Abril (em 1976). Durante o apogeu do desempenho da sua ‘missão’ (dos anos 30 aos 50) foram acantonados neste ‘casarão’ muitos portugueses cujo modelo de vida foi conotado com conceitos de ‘perigosidade e/ou inadaptação social’. Funcionou como o corolário daquela legislação da ditadura (Decreto-Lei 36448 de 1 Agosto 1947) que proibia formalmente a mendicidade e a vadiagem. Na prática, foi um centro de internamento coercivo para aqueles (ou aquelas) que nesses tempos eram catalogados como 'delinquentes sociais', 'deserdados da fortuna', etc. 

Resulta desta curta resenha que, entre situações diversas, os mendigos (percursores dos actuais ‘pobres’) integravam um vasto grupo de inadaptados sociais que eram recolhidos das ruas e entregues a cuidados preventivos, dentro de um ambiente concentracionário e aparentemente misericordioso.

Fundamentalmente, a atitude do Estado Novo tinha como finalidade sequestrar estes ‘delinquentes’, -e outros ofícios considerados como correlativos - da sociedade. Nessas instituições não usufruíam de apoios sociais nem de qualquer tipo de vigilância clínica ou medicamentosa. O que se praticava era uma forma encapotada de reclusão. Retiravam-se os ‘meliantes’ da rua. O termo internado tem em relação a estas situações um sentido apropriado já que não se pode estabelecer qualquer semelhança com o conceito de hospitalização ou reinserção.

Conceptualmente, o Estado Novo, decorrente da manifesta intenção de regular (e reprimir) comportamentos sociais (e políticos) 'anómalos', pretendeu estabelecer uma relação directa entre a vadiagem e a mendicidade e vice-versa. Para além disso, a estratificação social vigente impedia a mobilidade social e os chamados elevadores sociais pura e simplesmente estavam bloqueados por preconceitos, caridadezinhas e hipocrisias.

A pobreza foi considerada uma fatalidade, quiçá um 'castigo divino', que punia os desvalidos (na infância, na vida adulta e na velhice). Nunca se ousou abordar as causas económicas e sociais da pobreza o que veio a condicionar todos os tipos de resposta.

Fiquemos por aqui nestas considerações sumárias e eminentemente retrospectivas e regressemos às declarações do actual Ministro.

Trata-se de uma posição que, muito embora tenha condicionantes temporais, de regime e semânticas, corre o risco de aproximar-se da concepção assistencial que descrevemos para os ancestrais albergues e que o CDS (partido a que pertence Mota Soares) parece querer fazer reviver.

De facto, quando ouvimos falar de uma nova relação entre o Estado e as instituições privadas sociais assalta-nos a tenebrosa miragem de podermos estar na presença de uma proposta, adaptada ao séc. XXI, que visa internar ‘à molhada’ por este País os velhos e novos pobres em múltiplos e encapotados ‘Albergues da Mitra’.

Na memória de alguns portugueses ressoarão ainda pregões como este: ‘És velho? Vais para a Mitra!’…

Comentários

Este post é mais demolidor para a ditadura fascista e para o atual Governo do que muitos panfletos e artigos de opinião juntos.

Parabéns pela viagem à memória e pela lição de história.
Subscrevo e reforço o comentário de Carlos Esperança.

Queria ainda chamar a atenção de e-pá - que normalmente é mais bem informado do que eu - para o seguinte: se bem percebi uns discursos que ouvi na TV, o governo preparar-se-ia para dar às piedosas instituições 700 euros por mês por cada pessoa assistida. Isto seria absurdo: pagaria mais à instituição do que paga aos reformados para sobreviverem pelos seus próprios meios! Será que percebi mal os tais discursos?
e-pá! disse…
Caro AHP:

Não conheço essa notícia. Mas não me espantaria.
O que público e notório é uma profunda transferência das funções prestadoras do Estado, no campo da acção social, para as IPSS, obviamente acompanhada do respectivo envelope, que foi (ou ainda está a ser) negociada por mais um grupo de trabalho… link
Caro e-pá

Obrigado pelo esclarecimento. No fundo, só não se sabe ao certo se são os tais 700 euros. Do que não há dúvida é que o governo - e em especial o CDS - que diz não haver dinheiro para o Estado Social, já tem dinheiro para pagar às IPSS para estas desempenharem um simulacro "caritativo" das funções do Estado Social.

O mesmo querem fazer com a educação. Para preparar o desenvestimento na escola pública, já andam a propalar a atoarda de que "sai mais barato" pagar às privadas - na maior parte católicas - para sbstituirem o Estado no ensino. Mesmo que saísse mais barato - do que duvido - seria intolerável. Em termos de valores democráticos, "o barato sai caro".
Corrigenda: queria escrever "desinvestimento" e "substituirem".
é pá a mitra era a escola dos regentes agrícolas de eboracum

só um alfacinha pensa que mitra há só uma....

e a mitra se bem me lembro ´é um dos asilos pioneiros

há casas de velhos nos dias de hoje bem peores...

1930, 15 Abril - a Câmara Municipal compra o palácio e anexos, por 4.000 contos, à Sociedade Fuertes & Comandita, para aí instalar um matadouro, projecto nunca concretizado; instalação no local da Estação de Limpeza Oriental; 1933, 04 Maio - inauguração do Asilo da Mitra, instalado nos barracões da extinta Fábrica Seixas; 1934 - reconstrução do piso inferior para instalação da Biblioteca Municipal do Poço do Bispo, conforme projecto do arquitecto Fiel Viterbo, com a criação de um vestíbulo, 3 salas de leitura, uma sala de reservados, 3 depósitos, vestiário, instalações sanitárias e uma casa para o guarda, voltada a N., com uma cozinha, dois quartos e instalações sanitárias; desaparecimento da antiga cozinha e demolição da capela *4, cujo recheio foi devolvido ao Patriarcado, excepto os painéis de azulejo, alguns transportados para o Palácio Galveias e hoje no Museu da Cidade; execução de dois painéis de azulejo para o vestíbulo; 1 Março - a obra é adjudicada por 89$500 e acompanhada pelo arquitecto Fil Vitervo; 17 Outubro - inauguração da Biblioteca; séc. 20, década de 40 - construção de um torreão no muro do pátio; 1941 - a Câmara Municipal instala o Museu da Cidade no palácio, transferido do Palácio Galveias; 1942 - remodelação do pátio de acesso, após a demolição de um edifício em ruínas que se achava anexo, conforme projecto dos arquitectos António Ribeiro Martins e Henrique Taveira Soares; parecer técnico sobre a vedação do pátio assinado pelo arquitecto Pardal Monteiro, sugerindo a entrada pela face poente; 24 Abril - inauguração do Museu da Cidade no local; 1973 - o Museu da Cidade deixa de ocupar o edifício, transferindo-se para o Palácio Pimenta; o andar inferior é cedido ao grupo Amigos de Lisboa...

e daí até hoje há amigos de lisboa
que preferem a vida ao ar livre

ou nas novas barracas que o 25 de abril do ano seguinte mudou de lugar...

boçê é esquecido né?
all zei mer? já?
por falar en fascistes e coisos taes

aqui no deserto a falta de emprego é tanta que os contentores acumulam-se como nos dias dos retornados

as horas extra-ordinárias andam também en baixa

um regime fascista de velhos é pouco provável

acho que vai ser à moda do haiti
sobreviveram em ditadura

colapsaram em alguns anos de democracia

acontece...a con tece sempre outros con's

iste já parece a esquerda pubicana
com os commentadores louvaminheiros do estado novo a tecerem loas aos seus parceiros

e a dizer olhe que não aos senhores doutores da oposição

olhe que não o cabanas deve ter sido o único deputado não doutorado do ps que foi preso...

preso como os do Pcp queria eu dizer.....

o resto...pois...
Unknown disse…
Fiquei esclarecido quanto ao Palácio da Mitra, construção e seus antecedentes, motivos e funções, contexto politico/social. Por isso os meus agradecimentos ao E.pá. Constatei mais uma vez,(aqui) a subserviência dos esclarecidos(á época)e muitos e muitos que ainda ainda hoje bajulam, no anel e na batina os entendidos nas manipulações mentais de desinstruidos, deserdados,explorados etc com a conivência dos poderes eleitos e instituidos.Por ex: instrução profissional obrigatória para todo o/a cidadão/a que não quisesse as áreas acadêmicas em uma arte/ofício. "Slogan" sou útil á sociedade. E passaria a haver muito menos "carne para canhão ". Desculpem estes apartes

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