Ébola e as suas maléficas ‘circunstâncias’…
A febre hemorrágica viral (pelo vírus ébola) foi considerada pela OMS uma “emergência de saúde pública internacional” link e mostra como uma infecção viral, com elevado grau de contagiosidade, é capaz de alarmar o Mundo. Isso só pode acontecer quando uma epidemia vai de encontro a tremendas vulnerabilidades estruturais (como é moda hoje catalogar) que persistem em vastas áreas e regiões do planeta.
É certo que outras variantes patológicas de etiologia semelhante (viral) existem e ameaçam mas estão – para já! - relativamente controladas, como é o caso da febre-amarela e do dengue (ambas provocadas por um flavivírus), só para referir as que apresentam uma maior incidência humana.
Trata-se de uma dramática ‘situação africana’ que não caiu do céu, nem será um ‘castigo divino’, embora esta emergência esteja associada um importante conteúdo geográfico, político e cultural.
É, isso sim, a trágica exibição de vulnerabilidades estruturais e desequilibrios fatais no campo do desenvolvimento, encarados no seu contexto global, e que se mostram capazes de provocar terríveis consequências humanitárias. O apelo de Ban Ki-moon, Secretário-Geral da ONU (12.Set.2014) link, a solicitar ajuda internacional ‘global’ e a catalogação da situação como uma ‘ system wide crisis’ é bem demonstrativo da sua gravidade.
A análise destes problemas tem sido marginalizada já que o combate à situação instalada no terreno (Serra Leoa, Guiné-Conacri e Nigéria) tem concentrado as atenções e escondido os insuficientes recursos disponibilizados.
De salientar, em primeiro lugar, o facto de estas devastadoras ‘febres’, em termos de mortalidade, terem um particular ‘acantonamento’ no continente africano. Alguma razão tem de estar subjacente a esta realidade. Não é difícil encontrar uma teia com várias fragilidades que vão da inexistência de uma rede sanitária básica, a deficiências educacionais que impossibilitam qualquer tipo de prevenção e, por outro lado, condicionantes culturais atávicas que começam numa ‘natural’ desconfiança e de que são exemplo as tradicionais cerimónias fúnebres africanas.
Todavia, por detrás destas evidências primárias e imediatistas existem ocultos flagelos de relevante importância: a fome, a miséria e o subdesenvolvimento. Esta constatação não é novidade já que foi ab initio percepcionada por investigador Peter Piot que, desde o primeiro surto de ébola (re)conhecido em 1976, tem dedicado a sua vida e o seu trabalho à infecciologia link bem como em recente artigo de Margaret Chan (Directora-Geral da OMS) no New England Journal of Medicine link.
Hoje, podemos consultar indicadores internacionais que decifram este aparente ‘enigma’. O Indice de Desenvolvimento Humano (IDH) publicado pela PNUD da ONU mostra a situação de países como a Serra Leoa, Guiné e Nigéria fortemente afectados pela epidemia de ébola.
De acordo os dados publicados link verificamos que eles ocupam respectivamente as seguintes posições: 183º; 179º e 152º (num total de 187 países referenciados). Pior do a Serra Leoa só o Chade, República Centro-Africana, Congo e Niger. Por ironia todos países africanos.
São dados absolutamente dramáticos e dizem tudo. Não admira portanto que algumas organizações médicas considerem o surto de ébola ‘fora de controlo’. O presente surto epidémico deverá, apesar deste dados alarmantes, resolver-se com a ajuda internacional embora num prazo mais dilatado do que as anteriores crises. Todavia, permanece latente – há mais de 5 séculos – o ‘virus do subdesenvolvimento’, isto é, o verdadeiro factor patogénico que não está a ser combatido e ameaça transformar-se numa pandemia. As ‘condições de proximidade’ criadas pela globalização económica enquanto não resolverem as assimetrias de desenvolvimento podem transformar-se numa ameaça velada.
Temos exemplos recentes desse risco nos surtos de gripe aviária, gripe suína (H1 N1 ou influenza A), etc.. E dormente, na imensa paisagem africana, vive (sobrevive) o grave problema da malária que continua a dizimar anualmente milhares de vidas.
Existem, também, exemplos recuados como por exemplo a sífilis que nós - ou os espanhóis - importamos das Américas, na época dos Descobrimentos (a ‘globalização de antanho’) e rapidamente espalhamos pela Europa…
Exemplos históricos não faltam. Faltará, isso sim, reconhecer que, hoje, o’ neo-colonialismo’ assente na exploração de matérias–primas, riquezas naturais e energéticas associadas à concentração discricionária (abusiva) da riqueza por parte de elites dirigentes entrosados com grupos económicos e financeiros internacionais é uma ancestral realidade que levou muitos países de África a situações de pobreza extrema, mal-nutrição e índices brutais de mortalidade infantil. Quando olhamos para o PIB per capita na Serra Leoa e verificamos que o mesmo ronda os 1400 dolares/ano o que coloca este País no 208º lugar no ranking mundial (que inclui 228 países) link muita coisa fica explicada. Curioso é que nos últimos 20 lugares deste ranking mundial 15 são países africanos. Não fica, portanto, muito por desvendar. Ocorrências deste tipo (existem outras sociais e culturais) deverão ser consideradas como o principal motor do subdesenvolvimento, na verdade, o ‘vírus primário’ dos presentes males.
Controlar a actual epidemia – o que não está a ser uma tarefa fácil - não chega. África e, no caso vertente a sua bordadura atlântica (ocidental), evidencia, com este surto epidémico de ébola, brutais carências económicas e sociais que estão por detrás do problema. Remediar não chega.
Chegou a hora de colocar no terreno a ‘prevenção primária’. Ninguém se pode declarar satisfeito quando a resolução do actual surto chegar – como esperamos - a bom termo. Os problemas persistirão para além de todas as enfáticas declarações que virão à luz do dia quando tal acontecer. A consequência imediata e obrigatória será procurar, no seio da ONU, chegar a consensos à volta de acções e recomendações que ajudem os africanos a libertarem-se do flagelo do subdesenvolvimento.
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