Abril, sempre. Clic.



O 25 de Abril veio encontrar na Rua Braancamp, a Cooperativa Esteiros, nome e local com que fomos obrigados a substituir a cooperativa livreira que, com o nome de DEVIR, na Rua Duque de Loulé, tinha sido mandada encerrar pelo Governador Civil, com a ajuda prestimosa dos touros da ganadaria do capitão Maltês[E1] [E1] , expressão com que designávamos os polícias de choque que, não raras vezes, nos tinham agredido sob o comando do detestável oficial.

Ficaram para trás memoráveis sessões onde pontificaram Pereira de Moura, Sérgio Ribeiro, Lino de Carvalho, Hugo Blasco Fernandes, Carlos Carvalhas, Ana Maria Alves, Zé Manuel Tengarrinha, Urbano Tavares Rodrigues, César Oliveira, Sottomayor Cardia e tantos, tantos outros.

Foi na Esteiros que me apresentei, regressado à pressa de Coimbra, quando soube do golpe militar. Foi ali que a CDE começou logo a funcionar antes da transferência para o palácio na Rua Artilharia Um. Foi ali que me dei conta que um golpe militar se transformava, pela força da vontade popular e coragem dos seus autores, numa revolução que iria transformar Portugal.

Os velhos companheiros que nunca se furtaram a uma boa conversa andavam agora numa azáfama que o evoluir da situação justificava. Todos os dias, sob a varanda da Esteiros, se juntavam milhares de pessoas que vinham, descendo do Rato, ou subindo do Marquês, vitoriar os militantes da CDE que ali se encontravam, considerados o braço civil do MFA.Foi num desses dias, entre 28 e 30 desse mês de Abril de 1974, que, uma vez mais, milhares de cidadãos se encaminharam para a casa anódina onde antes se conspirava sob a fachada da venda de livros, havia vários meses. Gritavam o slogan mais repetido de sempre: o povo (pausa) unido, jamais será vencido... O povo... unido, jamais será vencido.

Erguiam-se punhos, fazia-se o V com os dedos, numa clara convicção duma vitória consolidada. Como de costume era preciso que alguém falasse à multidão que se comprimia, ali, sob a varanda que simbolizava a liberdade.

Éramos poucos os que àquela hora da tarde nos encontrávamos na cooperativa. Alguém pronunciou o meu nome. Ainda hoje penso que foi o Vítor Branco que na sua enorme modéstia escondia um grande talento e uma excepcional bondade. Não me fiz rogado. Creio mesmo que esperava aquele momento, a ocasião nunca antes surgida, a oportunidade sempre perdida para companheiros mais preparados.

Sei que empunhei o megafone que já vira usar e que nunca tivera na mão. Senti-o prolongar-me o braço dando-me autoridade e acrescentando-me dimensão. Entusiasmei-me com os gritos da multidão, com a sua solidariedade, com o entusiasmo vibrante que se agiganta quando são milhares a partilhá-lo.

Tive dificuldade em começar, senti a voz a embargar-se, mas vi, mal apontei o megafone à rua e me debrucei sobre o parapeito da janela, que uma salva de palmas me acolheu, que a emoção a todos contagiava. Adivinhei lágrimas de alegria naqueles rostos, senti o silêncio que logo se fez para me escutar. E comecei:

- Amigos, (pausa), companheiros e camaradas (pausa). A ditadura caiu.Foi uma quantidade impressionante de palmas que pontuaram estas palavras. Outra vez ainda ressoou o grito unânime “ o povo ... unido, jamais será vencido, o povo... unido, …

Senti de novo o silêncio quando me preparei para prosseguir. Repeti as palavras com que comecei o discurso. E as palmas regressaram vibrantes, as palavras de ordem entoadas com força redobrada, o entusiasmo aumentado com mais pessoas a engrossarem a multidão. Todos queriam escutar-me, suspensos das palavras que pudesse dizer-lhes. Senti despertar o tribuno que nascia em mim. Emocionado prossegui: - nunca mais, camaradas, deixaremos que a liberdade, agora conquistada, seja confiscada pelos carrascos que nos oprimiram durante quase meio século.

Foi o delírio. A emoção contagiou-nos a todos. Senti que naquele momento fazia parte da História e fazia História. Para isso só era preciso estar no sítio certo, na hora certa e do lado certo. E eu estava. E tinha lugar vago. Desde 1961, ou mesmo antes, que aguardei o fim da ditadura, sabendo sempre que tinha razão, sobretudo quando era das liberdades cívicas que apenas se tratava e não da sua definição na prática concreta da luta.

Eu queria prosseguir, empolgado com as minhas próprias palavras. Tinha tanto para dizer àqueles milhares de cidadãos que me escutavam com devoção, tinha a luta duma vida para transmitir na síntese breve de um discurso, o exemplo cívico dum democrata a exprimir, o sonho lindo tantos anos acalentado e agora tornado realidade – mas a multidão, cada vez mais compacta, parecia satisfeita, crescentemente empolgada, transportada para o clímax dos grandes momentos históricos. A custo recomecei, perante um novo silêncio que por milagre de novo aconteceu, abafado o ruído, se assim se pode dizer, para acrescentar: - Todos juntos faremos um país melhor. Foi o delírio. Uma ovação que ressoou do Marquês até um pouco acima da Esteiros, para onde foram empurrados os primeiros manifestantes, acolheu as minhas palavras.

Continuei por mais algum tempo, desfiando as desgraças duma guerra que nos tinha sido imposta, as misérias da pátria madrasta a que o abutre de Santa Comba nos tinha condenado. Falei da censura, das prisões arbitrárias, da fome, da tortura. A cada pausa, uma aclamação. A cada gesto, um novo silêncio de quem estava suspenso das palavras que tinha o privilégio de pronunciar.

Saíram-me então as palavras mágicas: prisões, guerra, censura, nunca mais. Foi já sem voz, todo comoção e sentimento, já sem ódio, contida a raiva, que procurei articular um viva ao MFA.

Creio que não consegui.Senti que as forças me abandonavam. Senti lágrimas. O megafone pendia-me em direcção à rua. A multidão apercebera-se decerto. De novo irromperam palmas, os VV, os milhares de VV que os dedos médios e os indicadores faziam, e, de novo, o povo... unido, jamais será vencido, o povo....

Aquela multidão, então já virada para o Marquês, continuava a gritar as palavras de ordem cujo eco continuava a chegar-me. O silêncio era progressivamente devolvido à rua sem carros, enquanto os meus olhos acompanhavam aquela imensa mole humana que desaparecia lentamente pela Avenida da Liberdade abaixo, certamente em direcção ao Rossio, sem que a exaltação patriótica esmorecesse.

Se tivesse demorado mais eu não teria aguentado a excitação, minguava-me a força nas pernas, batia-me descompassado o peito, sentia-me desfalecer. Foi já completamente vencido, exausto, indiferente a tudo, numa espécie de torpor, que abandonei a tribuna improvisada para ouvir a Júlia dizer-me:

- Não ligaste o megafone!

[E1] Maltês Soares

Comentários

Mano 69 disse…
Como se dizia, ou escrevia, no tempo da outra senhora: supimpa!

Um abraço
Anónimo disse…
É bom sacudir o pó aos adjectivos e à memória quando uns e outra valem a pena.

Obrigado.

Abraço.
Anónimo disse…
Será que este tal "Zé Beto" tem alguma coisa a ver com o 25 de Abril?
Ou, como se costumava dizer há uns tempos: - onde estava no 25 de Abril?
Anónimo disse…
Todas as palavras seriam sempre poucas.
obrigado.
Anónimo disse…
Uma boa "história", da História do 25 Abril.

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