A Sandoz e o negócio de diamantes em Coimbra (Crónica)

No ano de 1976 já se tinham desvanecido os ecos da mais idiota e injusta das greves que o pequeno educador da classe operária, Chaves Alves, tinha conseguido fomentar numa multinacional cuja autogestão exigia – segundo disse à imprensa –, ávida de agitação e a que não faltavam declarações de idiotas úteis e provocadores convictos.

Ajudou-o na tarefa o Cabral da Costa, que tinha maior amor à greve do que à gramática, que maltratava, e que deu origem à dupla Chabral da Costa. Para gerir, havia máquinas de escrever, pastilhas, supositórios e xaropes, vindos da Suíça, onde o operariado jamais se solidarizou com a vanguarda Chabral.

A euforia e o medo de passar por reacionário permitiram suportar a coação psicológica a que nem o António Gonçalves, respeitado pelo passado de resistente, durante a ditadura,  logrou pôr cobro. Até ao dia em que a fadiga e o impasse deixaram o líder sem tropas.

A Sandoz ocupava um lugar destacado na indústria farmacêutica e decidira manter dois grupos promocionais dos seus fármacos, Sandoz e Wander.

A hierarquia fora alterada revolucionariamente, situação que o Laboratório digeriu, o que permitiu ao Barroso chegar longe e fez o gerente regressar a Basileia.

Nesse verão de 1976 o Duarte Rodrigues era o chefe nacional da Wander e o Rebotim o da Região Centro. Em Coimbra estavam sediados dois delegados, o Silva Cunha e o cronista desta história. Uma manhã combinámos os quatro tomar café no Mandarim e dali fomos para o Hospital da Universidade de Coimbra (HUC), em trabalho.

O Duarte Rodrigues deixou o carro estacionado em frente ao Mandarim e eu deixara-o à entrada do Jardim da Sereia. Para o HUC fomos nos carros do Silva Cunha e do saudoso Rebotim, uma carrinha Peugeot 203, a diesel.

Antes disso, do carro do Duarte Rodrigues saiu uma embalagem de frascos de vitamina D3, que trouxera de Lisboa, e que fui meter na mala do meu Datsun 1200. No regresso houve entrega de amostras do Rebotim ao Silva Cunha, antes de entrarmos os quatro na carrinha e rumarmos à Mealhada, a almoçar leitão.

Foi longo e copioso o almoço. Na volta parámos na R. da Sofia a abraçar um colega e chegámos à Praça da República, com o dia cumprido, prontos a regressar a casa.

Quando o Rebotim parou junto ao meu carro, demos conta de um 1.º subchefe da PSP a meter a bala na câmara da metralhadora, armamento inabitual na corporação, e a gritar para ninguém fazer gestos suspeitos. De armas aperradas, dois polícias protegiam-lhe a retaguarda. Pedi que me deixasse abrir o carro e tirar os documentos de identificação.

Na carrinha Peugeot, com o Rebotim ao volante e o Duarte Rodrigues ao lado, entraram dois polícias para a parte de trás, enquanto um carro da PSP aguardava com dois agentes a minha entrada e a do Silva Cunha, que fora obrigado a mudar de viatura, e o subchefe, de enorme estatura e visível inquietação.

Os dois carros contornaram a Praça da República, subiram a R. Alexandre Herculano e, na primeira rua, viraram à esquerda para a esquadra. Quando os carros se imobilizaram, a um gesto do subchefe, o sentinela puxou a culatra e meteu uma bala na câmara. E foi num ambiente crispado que entrámos na sala de entrada onde um chefe nos aguardava e outros polícias reforçavam a segurança.

O primeiro a ser inquirido foi declinando o nome, Duarte Afonso Pimentel Rodrigues, chefe de propaganda médica de Produtos Sandoz, Ltd.ª, filiação, naturalidade e residência. O subchefe, tranquilizado com o armamento e a superioridade numérica, foi dizendo, meu chefe, vê, o fato condiz, e olhe a gravata, eu bem disse à Natércia que me pusesse outra, os senhores estão acusados de um crime muito grave – disse o chefe –, e o Rebotim sentia-se responsável, por se ter esquecido de pagar o imposto de gasóleo.

A seguir foi a vez do Ramiro Romão Rebotim e o Silva Cunha irado, tenente na reserva, a quem o subchefe, havia pouco tempo, falaria em sentido, recalcitrou e foi encostado à parede, levante os braços, e sumariamente revistado pelo subchefe. Nem um corta-unhas tinha. A profissão do Rebotim, chefe de secção de propaganda médica de Produtos Sandoz, Ltd.ª, pareceu abalar a confiança do chefe que nos identificava.

O terceiro fui eu e a qualidade de delegado de Produtos Sandoz, Ltd.ª punha em dúvida o delinquente cuja barba, fato e gravata coincidiam com a do meliante do bando que a PSP tinha detido sem um único tiro. Antes de perguntar o nome ainda disse, pode haver engano mas a descrição confere, e começou a identificação enquanto o jantar e a mulher aguardavam o recém-casado.

Por fim, foi a vez do Silva Cunha, sem armas ou amostras clínicas, e, mal tinha acabado de dizer que Manoel se escrevia com «o», mania de exigir o erro ortográfico de Júlio Manuel, o chefe recebeu um recado e suspendeu a identificação do perigoso tunante.

Disse que tínhamos deixado de estar detidos e que íamos em carros da polícia à PJ. Ali aguardava o inspetor-chefe que se queixou do atraso do seu jantar para nos poder pedir desculpa e pôr viaturas à nossa disposição, para nos levar onde desejássemos, depois de nos dar uma explicação.

Enquanto tomávamos café no Mandarim, pela manhã, um cliente lia no Comércio do Porto que 4 perigosos malfeitores, traficantes de diamantes, andavam a monte e faziam-se transportar num Dolomit, exatamente a marca do carro do Duarte Rodrigues. Tomou nota dos fatos, gravatas, estatura e outros detalhes que, à nossa saída, logo noticiou à PJ.

Foi ordenada a detenção da carrinha, cuja matrícula foi divulgada, e dos ocupantes. As patrulhas que nos aguardavam, fortemente armadas, não deram pela nossa passagem.

A notícia com mais de um mês, por razões que o Comércio do Porto não soube explicar, empastelada na tipografia, saiu naquele dia e com a marca do carro errada. Uma chuva miudinha, fora de tempo, evitou o espetáculo para numerosos conhecidos que se tinham recolhido nos cafés.

Apostila – É com imensa saudade que recordo o Rebotim, um excelente amigo e colega, a quem dedico esta crónica. Agosto/2014 

Ponte Europa / Sorumbático

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