Estranhas modas linguísticas

Por vezes sinto-me agastado quando, ao referir-me a uma pessoa que padece de anorexia nervosa, ou seja um anoréxico ou uma anoréxica, algumas pessoas me corrigem, insistindo que não é um "anoréxico", mas sim um "anoréctico".

Ora, procurando num dicionário, verifica-se que existe dupla grafia desta palavra: "anoréxico" e "anoréctico". (Aliás, há mesmo tripla grafia com a entrada em vigor da reforma ortográfica: "anorético").

No entanto, parece-me muito estranho como é que surge esta derivação do substantivo "anorexia" para o adjectivo "anoréctico".

Ora vejamos:
A origem etimológica de anorexia encontra-se no grego: ανορεξις, literalmente "sem apetite".

Outras palavras existem na língua portuguesa, frequentemente no domínio da medicina, que derivam do radical -ξις/-ξια (-xis/-xia, tendo o x o valor "ks"): anoxia (falta de ar), ataxia (falta de coordenação muscular), etc. E a sua derivação para adjectivo para o português faz-se respeitando a etimologia -ξικος/-ξικα (-xikos/-xikas, tendo o x o valor "ks"). Exemplos: tóxico- e não "tóctico"; disléxico e não "disléctico"; anóxica (a anoxia anóxica é o termo médico para a asfixia)- e não "anóctica"; atáxico e não "atáctico".

Talvez a origem desta estranha e injustificável derivação se deva à confusão do radical -ξις/-ξια com o radical
-σις/-σια (-sis/-sia) que, esse sim, deriva em -τικος/-τικα: -(c)tico/-(c)tica. Eg. diurese/diurético, síntese/sintético, génese/genético, etc.). Ou então de um seguidismo acrítico de semelhante derivação em francês (onde há, apesar de tudo dupla ortografia).

Comentários

ana disse…
O "seguidismo acrítico" é o maior responsável pelos ataques constantes à L. Portuguesa, com especial destaque para a CS. Dá vontade de tapar os ouvidos às criancinhas sempre que a TV transmite um noticiário. Um pimba qualquer lembrou-se de começar a cantar "músicas" e aí as temos para sempre. Do "pronto" ao "então é assim", temos passado por várias fases.Agora estamos na fase do "ele que". A seguir ao nome, profissão ou outra referência de destaque, jornalista que se preze não pode esquecer o "ele que".
Rui:

E caquexia e caquéctico?
Rui Cascao disse…
Carlos:

É verdade que caquexia deriva, em português em caquéctico e não em caquéxico. Mas nesse caso há uma razão linguística muito forte para escapar à etimologia.

Em grego, caquexia escreve-se καχεξία. O qui (χ) é uma velar aspirada, que não tem equivalente fonético nas línguas latinas, com excepção do espanhol "j". Pelo que, nas palavras de étimo grego em que existia, passou a valer como κ (capa), ou seja, q em português.

No caso de caquexia/caquético, o desvio à etimologia visa prevenir a cacofonia derivada da proximidade de duas consoantes de qualidade semelhante, q e ks. Caquéxico seria uma palavra estremamente cacofónica.

No caso de anorexia/anoréxico, tal cacofonia não se verifica, pelo que não há qualquer fundamento linguístico para a excepção.
Rui Cascao disse…
Não sei porquê, mas o blogger não aceitou o qui e converteu-o em capa.
Rui:

Obrigado pela explicação mas é demasiado erudita para poder argumentar.

Foi por acaso que me lembrei do exemplo «caquexia»
Rui Cascao disse…
Ah, entretanto fiz algumas investigações adicionais. Mesmo no étimo grego, καχεξία (caquexia) deriva em καχεκτίκος (caquético), portanto, ao contrário do comentário anterior que eu tinha feito, não há qualquer desvio aqui do étimo grego.
http://el.wiktionary.org/wiki/%CE%BA%CE%B1%CF%87%CE%B5%CE%BA%CF%84%CE%B9%CE%BA%CF%8C%CF%82
Outra moda cada vez mais disseminada é a fobia relativamente ao verbo "pôr", que substituem por "colocar" ou mesmo "meter". Coloca-se fim a uma questão, coloca-se um ponto final numa discussão, mete-se uma coisa em cima da mesa, etc.
A continuarem assim, qualquer dia dizem que a galinha colocou um ovo ou que o sol se colocou!

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