Saramago, crenças e crispação

(Cartoon de Onofre Varela)

O tempo passa e a tensão aumenta entre os crentes que usam uma linguagem cada vez mais crispada e intolerante para com o escritor que deu a Portugal um Nobel e enorme prestígio à literatura portuguesa. Basta ver o correio dos leitores de vários jornais e as ameaças e insultos que lhe dirigem.


Os bispos, padres e outros avençados do divino usam uma linguagem mais sonsa e dissimulada mas é igual o ódio que os devora e o ressentimento que manifestam.


Seria interessante, se não fosse perigosa, esta excitação dos católicos com Saramago. Este tem o direito de dizer tudo o que disse e o mais que lhe aprouver e aqueles gozam de igual direito em relação a Saramago e ao ateísmo. Não assustando já as penas do Inferno, uma lucrativa invenção pia que rendeu grossos cabedais, ameaçam agora com a situação de Salman Rushdie, vítima da demência de um aiatola que o condenou à morte por ter criticado o Islão. O que está em causa é a intolerância que em certas latitudes foi contida pelas democracias e em outras ainda anda à solta.


A ICAR abomina o direito ao riso e à felicidade mas é uma fonte de um e de outra. Torna felizes os que acreditam e diverte quem não a leva a sério.


Entre as fogueiras índias e as novenas católicas não há dados que indiciem a supremacia de umas sobre as outras quanto à eficácia na pluviosidade. As penas do chefe índio e o camauro do papa só diferem na estética. Os vestidinhos de seda do pontífice não se distinguem das vestes dos feiticeiros pelo ridículo, apenas pelo luxo e conforto.


A cigana que lê a sina não é menos eficaz a espantar os maus olhados do que o padre a esconjurar os espíritos malignos e a garantir o Paraíso. Às vezes a clientela é a mesma e procura na água benta o sinergismo das mezinhas e rezas ciganas.


O feiticeiro que prescreve a poção com corno de rinoceronte moído só é mais criticável do que o padre que celebra uma missa de acção de graças e ministra a comunhão porque põe em perigo a extinção da espécie animal, mas a eficácia sobre a convalescença dos doentes ilustres não é diferente, embora faltem estudos comparativos.


O baptismo com água benta é mais inócuo do que a circuncisão, que deixa marcas, ou a excisão que põe em risco a vida e destrói de forma irreversível a felicidade sexual mas todos são rituais iniciáticos e não há motivo para não nos rirmos dos rituais religiosos. Poucas encenações são tão hilariantes.

Comentários

Eduardo disse…
Parabéns por este grande espaço...
abraços
Já agora, uma curiosidade:

O 'Sorumbático' ofereceu 4 livros (entre eles uma «História das Religiões», em 3 volumes) a quem tivesse lido o livro e o comentasse.

Ora, apesar de a iniciativa ter sido bastante publicitada (em vários blogues, onde o tema 'Saramago' foi abordado), apenas 1 (sim, UM!) leitor deu a sua opinião...
CMR:

Somos um país de treinadores de bancada. Muita gente comentou Caim, ainda mais o compraram, mas muito poucos o leram.

E vale a pena ler aquelas 181 páginas.

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