Da legitimidade pretendida e perdida à destruição da democracia?

«Passos Coelho responde a Soares: Governo tem `toda a legitimidade´…» link
Certo que a legitimidade democrática conquista-se em eleições em que cada cidadão tem direito a um voto e o exprime livremente.
Todavia, as eleições não são actos formais ou acidentais e não obrigam os eleitores a demitir-se do exercício de direitos de cidadania até ao próximo escrutínio. A democracia não vive de sobressaltos, nem convive com interregnos e é posta em causa com desvios programáticos, perversões ideológicas visíveis ou ocultadas ao eleitorado e a má governação (um conceito subjectivo mas importante). É hoje bastante nítido – excepto para o núcleo duro governamental – que o XIX Governo Constitucional acumula todos estes (e mais alguns) défices (democráticos).

Para este Governo que adora comparar o sector público com o privado debaixo de um conceito de duvidosa equidade seria interessante que procedesse ao seguinte exercício: se acaso fosse uma entidade privada acha que conseguira sobreviver aos desaires que acumula desde há 2 anos?

Todos sabemos que a legitimidade democrática adquirida só sobrevive quando o Poder consegue alimentar ou preservar na sociedade consensos maioritários livremente aceites e colectivamente assumidos. O condicionamento que Passos Coelho tenta impor aos portugueses é falacioso e, pior do que isso, perigoso. Diz o obstinado governante que questionar a legitimidade deste Governo é por em causa os sacrifícios que os portugueses vêm fazendo…
De facto, os portugueses – sem que Passos Coelho se tenha apercebido – deixaram de ser peças despersonalizadas, objectos (nominais) ou simples números das suas políticas como Passos Coelho continua a tentar iludir para esconder. O descontentamento é endémico de diz respeito a tudo, mexendo com tudo e por tudo. Lideranças voluntariosas (obsessivas) como a que este Governo aposta não são persuasivas (mesmo invocando ancestrais medos como a bancarrota) e não conseguem fazer passar como boas ou inevitáveis um conjunto de soluções de 'ajustamento' menos democráticas (inconstitucionais).

É infame, saloia e trágica a esperança alimentada por este Executivo de que uma retórica oca, os malabarismos tecnocráticos, as 'engenharias' financeirtas e os espectros de dependência (ou insolvência), consigam obnubilar a capacidade de discernimento e de pensamento (a ‘exclusão de alternativas') dos cidadãos. Esta iníqua pretensão (pressão) não passa de um exercício utópico, desumano, politicamente rudimentar e inevitavelmente condenado ao fracasso. Ao tentar 'incrustar' na sociedade conceitos espúrios, tais como a 'justeza' de viver em condições piores  (mais pobres e mais aviltantes) do que no passado, o Governo cava a sua própria sepultura. E, no imediato, coloca-se à beira da repressão como corolário de uma rigida inevitabilidade de ‘mudanças’ económicas, sociais e culturais não adoptadas (nem sufragadas) pela maioria dos portugueses. Desemprego, confiscos fiscais, sufocos ‘rentistas’, juros usurários, lutas laborais, exclusão social, etc. são factores corrosivos do regime político que quando se agregam e potenciam – como é o caso português – desembocam não em crises mas em 'estados de emergência'. E o estado de emergência tem sido o cemitério de muitos regimes democráticos.

Daqui a 2 anos quando – obrigatoriamente - terminar a presente legislatura provavelmente levantar-se-á a mesma questão. Mas todos sabemos que não serão só os pesados sacrifícios impostos em sucessivas hordas – de que o orçamento rectificativo é o mais recente episódio - que vão, a qualquer momento, ser julgados. Serão obviamente as promessas e os resultados conseguidos. Resultados que são sequenciais e dinâmicos, não se restringindo a floreados do último ano de legislatura em jeito de saldo.
O erro capital deste Governo foi lançar-se na difícil tarefa de equilibrar as contas públicas sem simultaneamente – e concomitantemente - cuidar de salvaguardar a economia real. Já nem falamos no ‘estimular’ dadas as difíceis condições financeiras. Resultado: o descalabro no equilíbrio orçamental, o aprofundamento do endividamento e a tragédia do desemprego. Enquanto não se penitenciar deste erro major não poderá contar senão com a resistência dos cidadãos. A dificuldade é que a penitência não admite muitas variantes: passa inexoravelmente pela demissão do actual Governo e por nova consulta popular ('custe o que custar' para usar uma expressão cara aos actuais governantes...).

E não deveria ser necessário Mário Soares vir a terreiro lembrar-nos disso. No entanto, valeu, pelo menos, por nos ter dado a oportunidade de ouvirmos da parte do Governo mais uma alarvidade nas suas enviesadas concepções democráticas. Passos Coelho não tem qualquer rebuço para, fustigado pelos acontecimentos e pela oposição (resistência) popular, fazer um velado apelo à ‘cidadania passiva’ e ao ‘conformismo’. De facto, os tempos presentes mais parecem um palco esconso e pouco ilmunidado onde se movimentam alguns (poucos) ‘clowns’ (dispenso usar a palavra portuguesa) para gaúdio e entretenimento de 'espectadores' selecionados e selectivos (Berlim, Bruxelas, Frankfurt,...) que perante o espanto dos portugueses 'aplaudem' o 'caso de Portugal'.

Aliás, a prova de que Mário Soares não está a enveredar por declarações (e actos) diletantes teve-a o 1º. Ministro na sua terra natal onde, ontem, foi vaiado por taxistas, agricultores, viticultores e actores. link; link
O que faz mover esta contestação larvar, permanente e omnipresente?
- Certamente que a defesa do regime democrático para o qual este orçamento rectificativo é (mais) uma peça armadilhada.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Divagando sobre barretes e 'experiências'…

26 de agosto – efemérides