A igreja da minha aldeia (Crónica)

A igreja era a única construção sólida da aldeia. Os meus pais viriam a erguer uma casa de raiz para poupar os filhos ao frio que entrava pelas frinchas das paredes e aos pedaços de telha-vã que acontecia soltarem-se em noites de vendaval na casa que conseguiram. Eram poucas as janelas e os vidros que se partiam eram supridos por tábuas ou cartolina até chegar um novo, com tamanho aproximado, que acertasse no caixilho.

A escola viria a cair um dia, durante a noite, por milagre do Senhor, que soía colher os louros das desgraças que podiam ser piores. Se o milagre ocorresse durante as aulas era tragédia e caber-me-ia a perda precoce da mãe e do irmão mais novo, acompanhados de meia centena de crianças que ocupavam o espaço para onde desabaram três paredes e o telhado.

A Junta de Freguesia reduzia-se a um carimbo e um livro onde a professora escrevia e assinava a rogo de quem devia e não o sabia fazer. Pode dizer-se que a autarquia funcionava nas escadas das casas do Sr. António Bernardo e do Sr. José Simão, quando necessário; fora disso jazia em alguma gaveta, misturada com garfos e colheres de ferro ou de alumínio – já que o talher, com inclusão da faca para cada comensal, era uma coisa desconhecida e supérflua nesses anos e nesses sítios –, ou sobre a mesa por entre malgas e outra louça de barro. Julgava eu, então, que a Junta de Freguesia era o sítio onde se guardavam os boletins de voto dos vivos e mortos que no dia das eleições eram metidos na urna pelos eleitores que apareciam ou pelo Sr. António Bernardo quando faltavam, sobretudo os mortos, cujo exercício da vontade cabia ao presidente da mesa, sem surpresa nem reclamações.

A pobreza da aldeia só é imaginável, hoje, percorrendo países do terceiro mundo. Os ventres dilatados de várias crianças eram fruto de carências proteicas; e os olhos, que ameaçavam saltar das órbitas quando viam comida, denunciavam a fome que as consumia. Valeu a Cáritas, em meados do século XX, ter começado a distribuir leite em pó, farinha, queijo e marmelada. Só voltei a ver uma tal fome, sem apoio de qualquer organização humanitária ou instituição governamental, em finais dos anos sessenta do século passado, em Moçambique.

Mas era da igreja que ia falar, da sua torre de dois sinos que tangiam desde a manhãzinha até às trindades, sempre aptos a anunciar as cerimónias litúrgicas e as orações que faziam correr aflitos os paroquianos, não fosse o atraso fazer perigar o destino da alma ou atrair a recriminação do padre, ou mesmo do sacristão ou de algum zelador mais beato, por se sentirem investidos do prolongamento da autoridade sacerdotal e se anteciparem ao padre na admoestação.

A igreja era assaz grande para nela caber a população da paróquia e sobrar espaço. Podia proceder-se ao recenseamento durante a missa se lhe acrescentassem o meu pai e o Sr. Morgado, cujas ausências me intrigavam e algumas vezes me afligiram quando o Sr. padre verberava ateus, mações, comunistas e judeus e os condenava às perpétuas penas do Inferno, onde só havia choro, ranger de dentes e azeite fervente onde frigiam as almas.

Durante a catequese, que era ministrada à noite, aprendia-se a doutrina da única religião verdadeira, a que conduzia à salvação da alma, e decoravam-se as orações ensinadas num autêntico curso de terrorismo religioso que induzia terrores nocturnos e intensa xenofobia nas crianças mais sensíveis. É difícil perceber como duas catequistas tão doces e analfabetas tinham uma imaginação tão fértil e perversa.

A Igreja era varrida uma vez por semana e lavada de longe em longe por mulheres que mudavam as toalhas do altar e a farpela aos santos, esfregavam as pedras onde os devotos se ajoelhavam e limpavam as paredes com um pano húmido na ponta de um enorme varapau. A pia de água benta era lavada com água vulgar da fonte de mergulho e sabão, depois de acesas discussões teológicas para tentar concluir se a água benta que nela restava podia deitar-se fora sem cometimento de pecado ou se o uso do sabão não seria sacrilégio perante a bênção dessa água, que até a alma lavava. Valia a decisão da senhora Deolinda, que, sem conversas, alheia a preocupações metafísicas, encharcava um pano seco e o torcia na rua a escorrer água negra do lodo depositado e que a bendição não lograra tornar alvo, até enxugar a pia e proceder, depois, à limpeza com água e sabão azul.

As festas canónicas eram no Verão. Talvez o frio não desse saúde aos santos que saíam em passeio a ver a aldeia e a arejar ao som de cânticos, embora sem música, que a banda ia de graça mas era preciso alimentar os músicos e matar-lhes a sede. Vinha um pregador de fora, pago a peso de ouro, para exaltar a santidade do bem-aventurado que servia de pretexto à festa e, só isso, era um sério encargo para os mordomos e paroquianos.

Assisti a sermões empulgantes. Não, não eram empolgantes, como já pensa o leitor, imaginando-me um prevaricador ortográfico que deixou escorrer a nódoa para o pano da prosa. Os sermões, as missas, o terço e as novenas eram deveras empulgantes por causa do calor e dos animais com que as pessoas conviviam. A fé era retribuída com pulgas cujas picadas espalhavam o prurido, independentemente do ar empolgado dos devotos enquanto ouviam as palavras rebarbativas do pregador, justificativas dos honorários, possuídos do mesmo êxtase místico com que ouviam o latim da missa, que sempre os maravilhava.

Talvez, quem sabe, esse deslumbramento tenha guiado Bento XVI no regresso ao latim.

Comentários

Anónimo disse…
Enquanto as pessoas iam à missa, andava carlos esperança num programa de susbtituição por metadona.
Por isso lhe faltou a sabedoria que na altura era transmitida através dos sermões episcopais.
Anónimo disse…
Neste blog já identifiquei duas correntes distintas de ''postadores''.

A primeira, a corrente Rui Cascão consiste em escrever, escrever, escrever... sempre com conteudo nulo. Não está ao alcance de qualquer um.

A segunda, a corrente carlos esperança , consiste em zurrar com o teclado. Carlos tem-nos mostrado consistentemente a sua elegancia nesta dificil arte.

A primeira é entediante, a segunda hilariante.
Pessoalmente prefiro a segunda. É mais dificil de executar e diverte bastante a plateia.
Parabens aos dois por serem tão bons naquilo que fazem.
Anónimo disse…
A missa em latim tem, para a Igreja Católica, a grande vantagem de ninguém perceber os disparates e as inanidades que nela se dizem.
Anónimo disse…
Textos fabricados, enfim
Luís Queirós disse…
Caro Esperança

Mais uma bela crónica, como só tu sabes produzir

Ao ler este texto eu reconheço o cenário que descreves:

“A pobreza da aldeia só é imaginável, hoje, percorrendo países do terceiro mundo. Os ventres dilatados de várias crianças eram fruto de carências proteicas; e os olhos, que ameaçavam saltar das órbitas quando viam comida, denunciavam a fome que as consumia”

Este cenário não foi apenas o cenário da nossa infância; foi nele que viveram os nossos pais, os nossos avós e os avós dos nossos avós...

O que é que mudou nos últimos 50 anos para que hoje a “fome” seja apenas uma vaga lembrança, uma palavra quase sem significado para os nossos filhos?

Este pensamento angustia-me pois é verdade que hoje Portugal produz menos trigo, menos batatas e menos vinho do que há 50 anos. E até já estamos a desaprender a pescar?

Quem nos mata a fome?
Anónimo disse…
Quem nos mata a fome? Eu digo-lhe meu caro: São os escravos deste mundo, mais comummente conhecidos como terceiro mundo, subjugados que estão ao enorme poderio militar-industrial do Ocidente. E são também os recursos deste pobre planeta que, a este ritmo de fruição, vão desaparecer muito rapidamente. Não fugindo ao tema do post, Deus queira que os horrores descritos em algumas partes da Bíblia não voltem a ser actuais em nossos dias...
Rui Luzes Cabral disse…
Sr. Carlos Esperança, o artigo sobre uma nostalgia "infeliz" ou somente a descrição de um passado dificil está muito bem escrito. Eram assim aqueles tempos, tanto na sua Freguesia, como em tantas outras. Tudo é fruto do seu tempo e tudo se entende dessa forma.
Desenquadrado, simplesmente a última frase sobre Bento XVI e o regresso do latim. Este regresso que não se entenda como forma de se voltar ao passado obscurantista (antes Vaticano II). É simplesmente reavivado por questões meramente culturais e simbólicas. Nada mais.

Um Abraço

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