Creio na ressurreição e no ámen, só não acredito na vida eterna
Há dois anos vi-me suspenso, por duas jovens enfermeiras, a caminho do banho. Pensei que quatro décadas antes não seriam elas a levar-me, inversa seria a situação, mas não adivinhava o que sucedera e porque não me obedecia o corpo.
Descri da minha identidade, pedi a um enfermeiro para ver na NET o meu nome, queria certificar-me de quem era. Vi a minha mulher, reconheci-lhe a voz doce a segredar-me que fora grave a situação, dir-me-ia tudo à medida que perguntasse e preveniu-me para ter cuidado com o que dizia, carregava falsas memórias, já tinha inventado um cancro a uma amiga, reformado outra, com 40 anos, e concebido tolices várias.
O lençol pesava como uma montanha que me esmagasse os dedos, o corpo era como um vegetal movido pela força braçal de quem de mim cuidava. Lembrei-me de ter saído de casa com vómitos incoercíveis e dores abdominais violentas mas não estabelecia o nexo de causa e efeito. Não acreditaria ter passado dois meses sem memória.
Pedi o jornal e vi o que lá vinha, mas tiveram de segurar-mo. Era pesado como chumbo o diabo do papel. Li e fiquei feliz, sem euforia. Quis escrever. Só saíram riscos da luta da esferográfica contra o papel que me fugia. Que raio de vida! Afinal, não podia com o peso da esferográfica. E não falava ou não me fazia entender. Devo ter ficado naquele quarto, isolado, a fazer o desmame do propofol.
Poucos dias depois tive alta. Ora de cadeira de rodas, ora ao colo de voluntários, entrei e saí de um táxi, do hospital para casa. Levaram-me ao colo até ao quarto, onde tudo era familiar. Não conseguia pôr-me de pé mas sentia ter valido a pena, fosse o que fosse que me tivesse acontecido, para desfrutar, por um dia que fosse, a ternura da mulher, contida na exteriorização dos afetos mas intensa na dedicação e no amor incessante de sempre.
Afinal, na sequência da colecistectomia laparoscópica, na primeira vez que adoeci, uma bactéria tomou conta dos pulmões, primeiro, do fígado a seguir e, finalmente, dos rins, à falsa fé, sem a mais leve noção da minha parte, alvo de transfusões e diálise, sem saber, ainda hoje, porque não desligaram a máquina que me amarrou 52 dias após a cirurgia que precedeu o coma profundo que me reduziu a um vegetal esburacado com tubos, que a minha mulher observava aflita e emocionada, todas as horas consentidas em cada dia.
Gozei as delícias do nada de que falava Schopenhauer. Sofreram a mulher e os filhos, os irmãos e os amigos, e reiniciei a vida como criança, precisando de mão alheia para dar os primeiros passos, comer, voltar ao mundo dos vivos depois de ter experimentado a dimensão em que só existe o nada, sem um ser imaginário para me julgar, um rio de mel ou, pelo menos, uma das 72 virgens que aguardam os facínoras que a fé torna violentos.
Aprendi com uma pseudomona multirresistente que vale mais um só dia vivo do que a eternidade morto. E soube, como se não tivesse adivinhado em cada dia de tantos anos, do que uma mulher pode, da dádiva da vida de que é capaz, da reserva de amor que tem.
Há dois anos, no dia de hoje, 61 dias depois, regressei a casa, desmorrido.
quinta-feira, 12 de Junho de 2013
Carlos Esperança
Descri da minha identidade, pedi a um enfermeiro para ver na NET o meu nome, queria certificar-me de quem era. Vi a minha mulher, reconheci-lhe a voz doce a segredar-me que fora grave a situação, dir-me-ia tudo à medida que perguntasse e preveniu-me para ter cuidado com o que dizia, carregava falsas memórias, já tinha inventado um cancro a uma amiga, reformado outra, com 40 anos, e concebido tolices várias.
O lençol pesava como uma montanha que me esmagasse os dedos, o corpo era como um vegetal movido pela força braçal de quem de mim cuidava. Lembrei-me de ter saído de casa com vómitos incoercíveis e dores abdominais violentas mas não estabelecia o nexo de causa e efeito. Não acreditaria ter passado dois meses sem memória.
Pedi o jornal e vi o que lá vinha, mas tiveram de segurar-mo. Era pesado como chumbo o diabo do papel. Li e fiquei feliz, sem euforia. Quis escrever. Só saíram riscos da luta da esferográfica contra o papel que me fugia. Que raio de vida! Afinal, não podia com o peso da esferográfica. E não falava ou não me fazia entender. Devo ter ficado naquele quarto, isolado, a fazer o desmame do propofol.
Poucos dias depois tive alta. Ora de cadeira de rodas, ora ao colo de voluntários, entrei e saí de um táxi, do hospital para casa. Levaram-me ao colo até ao quarto, onde tudo era familiar. Não conseguia pôr-me de pé mas sentia ter valido a pena, fosse o que fosse que me tivesse acontecido, para desfrutar, por um dia que fosse, a ternura da mulher, contida na exteriorização dos afetos mas intensa na dedicação e no amor incessante de sempre.
Afinal, na sequência da colecistectomia laparoscópica, na primeira vez que adoeci, uma bactéria tomou conta dos pulmões, primeiro, do fígado a seguir e, finalmente, dos rins, à falsa fé, sem a mais leve noção da minha parte, alvo de transfusões e diálise, sem saber, ainda hoje, porque não desligaram a máquina que me amarrou 52 dias após a cirurgia que precedeu o coma profundo que me reduziu a um vegetal esburacado com tubos, que a minha mulher observava aflita e emocionada, todas as horas consentidas em cada dia.
Gozei as delícias do nada de que falava Schopenhauer. Sofreram a mulher e os filhos, os irmãos e os amigos, e reiniciei a vida como criança, precisando de mão alheia para dar os primeiros passos, comer, voltar ao mundo dos vivos depois de ter experimentado a dimensão em que só existe o nada, sem um ser imaginário para me julgar, um rio de mel ou, pelo menos, uma das 72 virgens que aguardam os facínoras que a fé torna violentos.
Aprendi com uma pseudomona multirresistente que vale mais um só dia vivo do que a eternidade morto. E soube, como se não tivesse adivinhado em cada dia de tantos anos, do que uma mulher pode, da dádiva da vida de que é capaz, da reserva de amor que tem.
Há dois anos, no dia de hoje, 61 dias depois, regressei a casa, desmorrido.
quinta-feira, 12 de Junho de 2013
Carlos Esperança
Ponte Europa / Sorumbático
Comentários
Viva a Ressurreição, de que os portugueses em geral precisam tanto...
Tenho uma familiar muito próxima que tem que extrair a vesícula - não lhe direi que li este texto de belos afectos.
Com os meus agradecimentos pelas suas palavras, pode dizer ao seu familiar que se trata de uma intervenção banal.
No dia seguinte, a minha mulher ia buscar-me quando lhe disseram que eu tinha ido para a reanimação.
São acidentes raros.
Bem-haja a sua ressurreição.
Que assim seja por muitos anos.
Fico satisfeito pelo ter tido o melhor desfecho. :-) Saudações