A cidade da Guarda e a campanha de Humberto Delgado (Crónica)
Humberto Delgado, com Maria Iva e Iva Delgado, no Hotel de Turismo |
Não sei como não teve conhecimento o reitor e se a carta chegou ao destinatário, com o selo de 1$00 que decerto me privou de alguns cigarros. Não foi audácia, foi ingenuidade que podia ter custado caro a meus pais e, certamente, a minha expulsão do liceu.
Alguns dias depois, o Primeiro de Janeiro anunciava a desistência do ilustre advogado a favor do general Humberto Delgado. Sem efeito, ficava o manifesto com que Arlindo Vicente se apresentou ao País, «sem farda, sem medalhas, …», palavras que me tinham seduzido. Fiquei dececionado e só a estima pelo advogado me levou a aceitar o general, a favor de quem abdicou.
Recordo-me da ida de Humberto Delgado à Guarda, não por tê-lo visto, que disso foram privados os alunos do liceu e perseguidos os que, não obedecendo, surgiram em fotos da multidão que se dirigiu ao Hotel Turismo, donde Delgado os saudou a partir da varanda da suite, virada para a frontaria, antes de ir depor uma coroa de flores no monumento aos Mortos da Grande Guerra.
Na manhã dessa sexta-feira, 30 de maio de 1958, foi lido, em todas as turmas do liceu, o aviso que anunciava a obrigatoriedade de uma explicação, para eventuais faltas às aulas da tarde pelos encarregados de educação dos alunos, e que, depois das aulas, se seguiria uma palestra obrigatória. Não nos impediu a idade de atingir a manobra e a despotismo, tendo sido a única palestra nos anos que ali andámos.
Da parte da tarde, à saída das aulas, fechadas as portas do liceu, os contínuos tocaram os alunos para o ginásio como os pastores ao gado para o redil. O Dr. Ferreirinha esperava-nos, enquanto o pessoal menor, designação oficial para contínuos, exigia silêncio a uma turba de jovens excitados e exaltados.
A ‘palestra’ impedir-nos-ia de ver o General na varanda da suite do Hotel, as cenas de pancadaria junto ao memorial aos mortos da Grande Guerra, no Jardim José de Lemos, o nosso colega Zé Grande a colocar a capa nos ombros do General, o polícia "foge à mãe" de cassetete em riste e as máquinas fotográficas que registaram os rostos dos que viriam a ser perseguidos pela polícia e suspensos do liceu pelo Rabaça, reitor conhecido por «o Malhado», graças ao angioma que lhe percorria e desfigurava uma das faces.
Das aldeias não veio gente, os padres da diocese advertiram os crentes, nas missas, para o pecado mortal de quem votasse no excomungado, como apregoavam panfletos a cuja distribuição nem os analfabetos eram poupados.
Mas disso não sabíamos ainda os alunos encerrados, nem da chegada do General, vindo da Covilhã, nem do assalto à sede da sua candidatura em Lisboa pelos arruaceiros que a União Nacional facilmente arregimentava, nem da presença de Maria Iva e Iva Delgado, respetivamente mulher e filha, que o acompanharam.
Vi, anos depois, fotografias tiradas pelo grande fotógrafo e democrata, o Sr. Armando, espólio a que a Pide não teve acesso, mas não lhe faltaram outras onde identificou os mais afoitos ou imprudentes e que começaram aí a perceber o que era a repressão.
Voltemos à ‘palestra’ do Ferreirinha, professor de Português, cuja formação académica era superior à cívica. Após os esforços do pessoal menor e dos seus gritos, a rapaziada acalmou e a dissertação sobre a peça de teatro «Quem tem Farelos», de Gil Vicente, lá começou.
O barulho e indiferença conjugavam-se para a patética exposição encomendada. Coube ao farsante do Ferreirinha, natural de Pega, uma pequena aldeia do concelho da Guarda, perorar sobre a farsa de Gil Vicente. Arrastou-se na exegese e nem as críticas vicentinas à nobreza e, sobretudo, ao clero, que enchia de sotainas a cidade, lograva obter silêncio. O respeito que granjeara nas aulas esbanjou-o no indigno frete a que se prestou.
Num determinado momento, sorriu, antes de ler mais uma passagem da farsa, prevendo o êxito que Gil Vicente teria em jovens reprimidos por preconceitos pios, rompendo a linguagem hipócrita. O Dr. ferreirinha pôs um ar alegre e, devagar, cito de memória, leu “Ordonho! Ordonho! espera mi. Ó fideputa ruim!”, antes de lhe chegar umo eco sonoro, vindo da multidão, “fideputa ruim, é você”, a que se seguiu um silêncio sepulcral.
Os segundos pareciam minutos intermináveis. Nesse instante entrou um contínuo, parou respeitosamente e, a um olhar interrogativo do Ferreirinha, comunicou, já se foi embora. – Saiam, ordenou o orador, perplexo e enxovalhado. E nós corremos a saber o que tinha sido a tarde lá fora e a respirar o ar de que a ditadura queria privar Delgado.
A caminho de Viseu, Delgado tinha enfrentado a repressão, rumo à vitória que lhe seria negada. As chapeladas, palavra que designava a introdução maciça de votos nas urnas, jamais seriam abandonadas, mas a ditadura, em pânico, e durante a campanha eleitoral, publicou o decreto-lei que proibiu a oposição de fiscalizar o funcionamento das mesas de voto. Sem fiscalização, graças às chapeladas, o fascista designado, Américo Tomás, «ganhou» as eleições, mas teve derrotas pesadas em concelhos alentejanos e do distrito de Santarém, onde a União Nacional se assustou. Os resultados oficiais afinados deram cerca de 75% dos votos expressos a Américo Tomás e 25% a Humberto Delgado, o que correspondeu a 758 998 votos e 236 528 votos, respetivamente, para cada candidato. As chapeladas, trocas de votos e votos de mortos, sem fiscalização dos cadernos eleitorais, preservaram a ditadura.
A passagem de Delgado semeou ventos de liberdade, enquanto ele correu para a vitória interdita, a demissão da Força Aérea, onde fora o mais jovem general, o exílio, a luta, a conspiração e, finalmente, a cilada em que seria assassinado pela pide.
Faltavam quase dezasseis anos para que outros militares vingassem a afronta de quem começara como cadete do 28 de maio e acabaria assassinado como “general sem medo”.
Ponte Europa / Sorumbático
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