O amola-tesouras
O amola-tesouras da minha infância era um nómada que viajava de aldeia em aldeia a consertar guarda-chuvas cujas varetas não aguentaram a força do vento, tigelas e pratos de barro quebrados, cujos cacos eram unidos e fixados com gatos; aguçava facas e amolava tesouras, enfim, era um topa-a-tudo que transformava um caldeiro velho num assador de castanhas, prolongava a vida dos objetos e aliviava a bolsa das pessoas a quem o conserto adiava a substituição.
Eram de fraca qualidade as peças a reparar mas o amola-tesouras fazia milagres. Pratos e malgas recuperados vedavam, como novos, o molho e o caldo; os pingos de solda resistiam ao calor do lume e as tesouras voltavam a cortar os nós e os pontos de bainhas que urgia baixar nas calças e saias das crianças porque as pernas tinham crescido.
Lembro-me do fascínio que despertava o amola-tesouras a pedalar na bicicleta-oficina para fazer girar a roda de lixa que aguçava as facas e tesouras e alisava a solda com que tinha vedado os buracos abertos pelo desgaste nos recipientes de metal.
Lembrei-me hoje dessa figura simpática, numa associação por contraste, desse homem que recuperava os pobres trastes de famílias pobres, tão ou mais pobres do que ele.
Amanhã ou depois, num palácio, um amola-tesouras recebe os trastes, outros, de carne e osso, de sebo e ranço, para certificar as peças de loiça quebrada, feita do mais grosseiro barro, para refazer uma união de facto entre um tanso e um patife, à espera de que nasça um governo do cruzamento de um molusco com um verme, aliás, de cadáveres híbridos que procriam graças à engenharia genética de quem troca a função do cargo pela de moço de recados.
E o País, abúlico, a respirar sob temperaturas superiores a 40 graus, à sombra, assiste pela televisão à remodelação de moluscos que um ouriço-cacheiro impôs ao povo, com a cumplicidade do amola-tesouras. Os invertebrados aparecem em destaque na zoologia do poder e o País esvai-se num jogo onde não sabe que estranhos e obscuros negócios podem levar ao concerto do que não tem conserto.
Eram de fraca qualidade as peças a reparar mas o amola-tesouras fazia milagres. Pratos e malgas recuperados vedavam, como novos, o molho e o caldo; os pingos de solda resistiam ao calor do lume e as tesouras voltavam a cortar os nós e os pontos de bainhas que urgia baixar nas calças e saias das crianças porque as pernas tinham crescido.
Lembro-me do fascínio que despertava o amola-tesouras a pedalar na bicicleta-oficina para fazer girar a roda de lixa que aguçava as facas e tesouras e alisava a solda com que tinha vedado os buracos abertos pelo desgaste nos recipientes de metal.
Lembrei-me hoje dessa figura simpática, numa associação por contraste, desse homem que recuperava os pobres trastes de famílias pobres, tão ou mais pobres do que ele.
Amanhã ou depois, num palácio, um amola-tesouras recebe os trastes, outros, de carne e osso, de sebo e ranço, para certificar as peças de loiça quebrada, feita do mais grosseiro barro, para refazer uma união de facto entre um tanso e um patife, à espera de que nasça um governo do cruzamento de um molusco com um verme, aliás, de cadáveres híbridos que procriam graças à engenharia genética de quem troca a função do cargo pela de moço de recados.
E o País, abúlico, a respirar sob temperaturas superiores a 40 graus, à sombra, assiste pela televisão à remodelação de moluscos que um ouriço-cacheiro impôs ao povo, com a cumplicidade do amola-tesouras. Os invertebrados aparecem em destaque na zoologia do poder e o País esvai-se num jogo onde não sabe que estranhos e obscuros negócios podem levar ao concerto do que não tem conserto.
Comentários