Os fiéis defuntos e os cadernos eleitorais (Crónica)
Quando as doces catequistas da minha infância me iniciaram no ódio aos hereges, ateus, maçons, comunistas e judeus, ensinaram-me igualmente a rezar pelos fiéis defuntos.
Cedo me tornei o melhor aluno da catequese, qualidade a que não seriam alheias as três refeições diárias e o inevitável lanche de que não beneficiavam os meus colegas que iam descalços à catequese e se referiam às barrigadas de fome, nos dias piores.
Talvez por isso, eu era mais sensível aos horrores do Inferno, ao abandono das almas do Purgatório, às delícias do Paraíso e a outras lucubrações metafísicas. A fome e o frio de outros garotos tornavam-nos indiferentes. Não entendia a necessidade da missa para os defuntos que já gozassem o Paraíso ou para quem penasse no Inferno, dada a ausência de trânsito entre os dois destinos, mas as catequistas diziam que, na dúvida, devíamos rezar por todos. E todos rezávamos, eu e os que, descalços e com fome, tiritavam nas pedras da igreja, entre o altar e o transepto, nas noites frias de inverno.
Sempre pensei, apesar de ser em novembro e no dia 2 a missa que lhes era consagrada, que fiéis defuntos fossem os mortos irrecuperáveis, os que não trocavam a defunção por uma ressurreição, salvo no dia de Juízo Final, quando no Vale de Josafat, regressado à Terra, viesse Cristo julgar os vivos e os mortos, como o credo romano ensinava.
Mais tarde, quando acompanhava a minha mãe aos atos eleitorais, passei a ter uma outra interpretação dos fiéis defuntos, julgando que eram aqueles mortos que, sem abdicarem da defunção, eram convocados pelo presidente da mesa eleitoral para votarem na lista da União Nacional quando, à leitura do nome o presidente da mesa se benzia enquanto o secretário introduzia o respetivo voto na urna. Eram, de facto, defuntos fiéis a Salazar. Nem a morte os impedia do cumprimento do dever cívico na única lista a sufrágio.
Depois dos catorze anos, perdido o medo do Inferno e o interesse pelo Paraíso, alheado da fé e da liturgia, deixei de pensar nos fiéis defuntos, mesmo quando a opção ateísta se impôs. Só voltei a pensar nos fiéis defuntos, há poucos anos, quando soube do interesse autárquico por eles.
Os fiéis defuntos adicionam 5% do ordenado do PR ao de vários edis e deles dependem as dotações orçamentais das juntas de freguesia e o nível do salário dos seus elementos. Sem a sua persistente permanência nos cadernos eleitorais, e nos censos populacionais, eram muitos os que só tinham a perder e apenas beneficiava o erário público que, por ser público, serve para benefício privado.
Os fiéis defuntos merecem que as associações autárquicas lhes mandem rezar a missa.
Cedo me tornei o melhor aluno da catequese, qualidade a que não seriam alheias as três refeições diárias e o inevitável lanche de que não beneficiavam os meus colegas que iam descalços à catequese e se referiam às barrigadas de fome, nos dias piores.
Talvez por isso, eu era mais sensível aos horrores do Inferno, ao abandono das almas do Purgatório, às delícias do Paraíso e a outras lucubrações metafísicas. A fome e o frio de outros garotos tornavam-nos indiferentes. Não entendia a necessidade da missa para os defuntos que já gozassem o Paraíso ou para quem penasse no Inferno, dada a ausência de trânsito entre os dois destinos, mas as catequistas diziam que, na dúvida, devíamos rezar por todos. E todos rezávamos, eu e os que, descalços e com fome, tiritavam nas pedras da igreja, entre o altar e o transepto, nas noites frias de inverno.
Sempre pensei, apesar de ser em novembro e no dia 2 a missa que lhes era consagrada, que fiéis defuntos fossem os mortos irrecuperáveis, os que não trocavam a defunção por uma ressurreição, salvo no dia de Juízo Final, quando no Vale de Josafat, regressado à Terra, viesse Cristo julgar os vivos e os mortos, como o credo romano ensinava.
Mais tarde, quando acompanhava a minha mãe aos atos eleitorais, passei a ter uma outra interpretação dos fiéis defuntos, julgando que eram aqueles mortos que, sem abdicarem da defunção, eram convocados pelo presidente da mesa eleitoral para votarem na lista da União Nacional quando, à leitura do nome o presidente da mesa se benzia enquanto o secretário introduzia o respetivo voto na urna. Eram, de facto, defuntos fiéis a Salazar. Nem a morte os impedia do cumprimento do dever cívico na única lista a sufrágio.
Depois dos catorze anos, perdido o medo do Inferno e o interesse pelo Paraíso, alheado da fé e da liturgia, deixei de pensar nos fiéis defuntos, mesmo quando a opção ateísta se impôs. Só voltei a pensar nos fiéis defuntos, há poucos anos, quando soube do interesse autárquico por eles.
Os fiéis defuntos adicionam 5% do ordenado do PR ao de vários edis e deles dependem as dotações orçamentais das juntas de freguesia e o nível do salário dos seus elementos. Sem a sua persistente permanência nos cadernos eleitorais, e nos censos populacionais, eram muitos os que só tinham a perder e apenas beneficiava o erário público que, por ser público, serve para benefício privado.
Os fiéis defuntos merecem que as associações autárquicas lhes mandem rezar a missa.
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