A oportunidade à beira da "perdição" II

Não consegui resistir a comentar o excelente post do e-pá.
Perdoem-me o pessimismo, mas Europa está estafada. O projecto europeu está cansado e irremediavelmente parado. Isto deve-se fundamentalmente aos seguintes factores:

1) Uma profunda crise de liderança. Inexistência de líderes competentes e inovadores. Longe vão os tempos de Delors, Schuman, Adenauer, Mitterrand, Kohl, Soares, e muitos outros que souberam e ousaram construir o edifício europeu, cujos alicerces vão sendo corroídos pelas térmitas. Resta-nos Barroso, Merkl, Sarkozy, Brown, Berlusconi, Balkenende.

2) Uma profunda decadência do modelo económico e social europeu. Devido a diversos factores, as grandes economias da Europa estão estagnadas. As famílias estão sobre-tributadas e sobre-endividadas. Os Estados desperdiçam recursos irracionalmente.

Em França a rigidez do sistema de segurança social e do próprio tecido produtivo, anestesiado por subvenções e outras benesses vai catapultando o país para o precipício.

Na Alemanha, as dificuldades da reunificação (mal feita), uma péssima liderança desde o Governo Schröder II e a falta de inovação tecnológica paralisaram a economia. Longe vão os tempos em que o slogan "Deutsche Technologie" vendia. Outrora gigantes da electrónica como a Blaupunkt ou a Siemens perderam hoje o protagonismo do mercado, cedendo perante marcas asiáticas como a LG, a Toshiba ou a Sony. A indústria automóvel e química, alicerces da economia alemã vão perdendo vantagem e competitividade.

Na Itália, a economia estagna, oscilando entre os incompetentes governos de Berlusconi e os voláteis e igualmente incompetentes governos de esquerda arco-íris. Um país corrupto até à medula, com assimetrias regionais gritantes (ora contando com regiões entre as mais ricas da Europa, ora com algumas das mais pobres).

Mesmo nos países escandinavos, apesar da profunda reestruturação do estado-previdência, o desemprego sobe e o PIB diminui.

Apenas algumas economias da EU 15 se vão aguentando e crescendo- Espanha, Holanda, ...

3) Uma profunda crise de mentalidade e valores. De uma forma geral, os europeus trabalham pouco e exigem muito. Endividamento, resignação, consumismo e alienação são os valores prevalecentes. Para além disso, e ainda mais grave, é a cultura do alijamento de responsabilidades próprias: a causa dos problemas nunca é do cidadão- atribui-se as culpas dos problemas ao governo, aos imigrantes, aos árbitros, às exportações chinesas, às multinacionais- nunca assume o cidadão europeu a sua própria quota-parte de responsabilidade.

4) Uma profunda crise cultural. Salvo algumas excepções, o output cultural da Europa é baixo e de fraca qualidade. Indústrias cinematográficas de culto nos anos 50 a 70, em França, em Itália, na Alemanha e na Suécia praticamente desapareceram. O panorama musical é ainda bem mais catastrófico. O kitsch de mau gosto triunfa nas artes plásticas. O que ainda vai salvando a cultura europeia vão sendo alguns escritores da velha guarda, como Saramago, Le Clézio ou Elfried Jellinek.

5) A estagnação da universidade e da investigação científica. A esmagadora maioria das universidades europeias está sub-financiada, funciona segundo modelos arcaicos e ultrapassados. Os investigadores e cientistas com real capacidade de inovação tecnológica vão sendo captados em massa por universidades e institutos de investigação nos EUA. A título de exemplo, um investigador doutourando numa universidade alemã ganha 950 Euros (líquidos) por mês. Sem inovar tecnologicamente, sem dar incentivos aos seus cientistas, a Europa perde assim o comboio do progresso tecnológico, da indústria e serviços de elevado valor acrescentado, que são as únicas que poderão, no futuro, sustentar o elevado nível de vida dos seus cidadãos.

6) Um alargamento mal feito. O alargamento aos países de Leste foi mal feito, mal planeado e mal acompanhado. Antes de mais, o alargamento deveria ter sido precedido da reforma institucional da UE. Para mais, países foram incluídos ou excluídos segundo critérios arbitrários, independentemente da sua capacidade económica e nível de implementação do acquis comunitário. Os países bálticos foram incluídos por estarem na área de influência dos países escandinavos. Polónia, Chéquia e Hungria para contentar os alemães. Eslovénia e Eslováquia para satisfazer os interesses austríacos. A Roménia para contentar os franceses. Deixados de fora por questões meramente políticas foram a Croácia, a Sérvia, a Macedónia e a Turquia, não obstante estarem melhor qualificados que a Bulgária e a Roménia em termos quer de macroeconomia quer de outros requisitos de acessão. Alguns estados-membros foram aceites antes de terem resolvido previamente conflitos com estados terceiros ou com estados candidatos à adesão: o caso do Chipre (conflito com a Turquia relativo à divisão do Estado), da Eslovénia (conflito do golfo de Piran com a Croácia, apropriação de fundos pertencentes a ex-membros da RSF Jugoslava depositados no Ljubljanska Banka), dos países bálticos (leis racistas e xenófobas restringindo direitos da minoria russa).
Por outro lado, a venda ao desbarato a capitais estrangeiros do tecido produtivo, e a ausência de um pacote financeiro de apoio à transição criaram problemas terríveis de adptação (receberam muito menos subvenções que Portugal, Espanha ou Irlanda). Salvo algumas excepções (como a Eslováquia, que se conseguiu estabelecer com placa giratória logística da Europa central) não houve verdadeiros milagres económicos no Leste da Europa- apenas um regresso à performance económica dos anos 60-70 (antes da decadência das economias socialistas e do profundo declínio da transição).

7) E finalmente os egoísmos e vaidades nacionais. O alguns acharem ser prestigioso ter um nacional seu como presidente da comissão europeia, ainda que manifestamente inadequado para o cargo. O ódio cego aos imigrantes. Os "interesses nacionais" que se erigem em lei do mais forte. As cúpulas improvisadas em que se atrela Sarkozy a Merkl ou Blair a Aznar e Berlusconi que se arrogam a iniciativa de tomar decisões sem consultar os outros. Os Holandeses que votam contra o tratado constitucional porque estavam em crise política, os Franceses que fazem o mesmo porque não querem o canalizador polaco, e os Irlandeses porque depois de lhes encherem a barriga à tripa forra entenderam que há demasiada solidariedade social e ateísmo na UE, e que para além disso são um país neutro. Os Polacos e os Espanhóis porque querem mais meia dúzia de lugares nas instituições, os Checos porque estão zangados uns com os outros e com todos os outros. Os egoísmos nacionais minam totalmente qualquer possibilidade de ter uma voz em política externa, de ter um exército comum, condições necessárias para a Europa ter credibilidade. A desunião faz a fraqueza.

8) A soberba, arrogância e falta de visão estratégica dos europeus. Os europeus, nomeadamente os europeus ocidentais, têm um complexo de superioridade relativamente aos outros povos. Outrora dominaram o mundo politica, económica e cultural e tecnologicamente. Depois da 1ª Guerra Mundial perderam o domínio económico, após a 2ª Guerra Mundial perderam o domínio político. Agora também já perderam o domínio cultural e tecnológico. Mas a soberba continua. É por causa desta xenofobia e sentido de superioridade cultural que se aferrolham as portas da UE à Turquia. É por causa desta falta de visão toldada pela soberba que a Europa vai perdendo terreno em relação aos EUA e aos países emergentes.

Comentários

Apenas algumas economias da EU 15 se vão aguentando e crescendo- Espanha, Holanda, ...

RE: A Espanha cresce???
Rui Cascao disse…
Carlos, muito rápido:
Espanha, de 1998 a 2008, PIB per capita a PPC:

1998: 95.3
1999: 96.3
2000: 97.3
2001: 98.1
2002: 100.5
2003: 101.0
2004: 101.0
2005: 102.0
2006: 104.0
2007: 105.4
2008: 104.2 (f)

Fonte: Eurostat, 100=EU27,

http://epp.eurostat.ec.europa.eu/tgm/table.do?tab=table&init=1&plugin=1&language=en&pcode=tsieb010
andrepereira disse…
Rui, Mais uns meses de Macau e tornas-te um verdadeiro conservador, um homem às direitas. Os europeus não são assim tão preguiçosos: têm taxas de empregabilidade bem boas em ambos os sexos. E este lindo Continente ainda tem muito para dar, especialmente no domínio da tolerância, da paz, da justiça. Mas concordo com muito do que dizes. O trabalho e o mérito não são devidamente compensados e há uma terrível xenofobia e racismo por todo o lado, mais ou menos escondido, mas que vem ao de cima quando se fala de Turquia, de Israel, da China, etc. e tal. Um abraço, A.
polytikan disse…
não tarda muito o rapaz é promovido...
Rui Cascao disse…
Caro André:
Não é espírito conservador ou qualquer viragem à direita. Defendo e continuo a defender os valores da social-democracia e do estado-previdência. O que me parece é que há vários factores, que enunciei, que estão a corroer a Europa. Há muita coisa que tem que ser mudada para que a Europa possa manter sustentadamente a sua prosperidade. Sem inovação, sem alguns ajustamentos na mentalidade dominante, sem uma reforma profunda e articulada da economia, a prosperidade europeia, que é o sustentáculo de todas as outras virtudes suas (a qualidade da democracia, a tolerância, a igualdade de género e o estado providência) poderá ser irremediavelmente afectada.
andrepereira disse…
Apoiado. É por isso que o centro-esquerda tem méritos, como eu sempre pensei e defendi! Ou dito por outras palavras, mais complicas, esquerda liberal e republicana.
Rui Cascão:

A minha observação referia-se à actual conjuntura onde a Espanha é dos países mais castigados.

Não me referia a uma década.

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