Diálogo de religiões


«Deus não deve justificar a violência» – diz o Papa. Mas provoca-a, como se sabe.

O diálogo de religiões é uma impossibilidade teórica e prática. Pode - e deve - haver diálogo de culturas. Aliás, as culturas contaminam-se, no sentido sociológico, e acabam por ser a síntese de várias, o produto da convivência entre comunidades diversas, o resultado da assimilação mútua e recíproca dos usos e costumes de todas e cada uma.

O diálogo das religiões é diferente - uma utopia na melhor das hipóteses e, na pior, uma operação de marketing para facilitar o proselitismo e disfarçar o aversão. A religião, qualquer que ela seja, considera-se a única que interpreta a vontade divina e, pior do que isso, exige que todos se submetam à vontade do seu Deus.

Os homens estão condenados a entenderem-se mas os deuses não podem fugir ao confronto. O boato de que os livros sagrados são a expressão da vontade divina, ditados por anjos ou intermediados por profetas transforma as palavras em dogmas e os supostos recados de Deus em sentenças de obediência obrigatória.

Quando um dignitário de uma Igreja fala em diálogo das religiões tem em vista aparecer aos olhos do mundo globalizado como líder e arauto da unificação de todos os credos a quem promete o Paraíso e pede ajuda no combate ao secularismo, laicidade e ateísmo.

Não há diálogo entre doutrinas totalitárias. Não é possível haver cedências em nome de Deus porque ele não aparece e os que dizem representá-lo não querem prescindir dos privilégios do múnus e do conforto do clã. Deus é o maior detonador do ódio que os homens inventaram. Tem os piores defeitos dos seus criadores e minguam-lhe as virtudes que a humanidade, na sua caminhada, foi adquirindo.

Não é por acaso que as sociedades secularizadas e os Estados laicos protegem direitos, liberdades e garantias, pugnam pela não discriminação em função da raça, sexo ou religião, em suma, são plurais, tolerantes e regidas pelo direito.
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Pelo contrário, as sociedades que se regem pelos livros sagrados são intolerantes, cruéis e misóginas, perpetuam os hábitos tribais e exercem a jurisprudência canónica - um simulacro de justiça-, administrada pelos clérigos com divina crueldade.

Comentários

Rui Luzes Cabral disse…
As religiões, tal qual como a sociedade fizeram o seu caminho e não estão isentas de culpas na construção do mundo, tal qual não estão monarcas, imperadores, democratas, agnósticos, ateus, etc... Os erros que cometeram são o reflexo da sociedade e isso não se combate, aperfeiçoa-se. No que depreendo neste texto é que se deve combater a religião como muitos ainda querem combater os homossexuais. O que se deve lutar é por uma maior aproximação ao que dizem os livros sagrados das religiões. Deveremos, os que acreditam e os que não acreditam proporcionarmos que as religiões sejam mais puras e mais sãs. No caso da católica, por exemplo, que imite a Cristo e não a alguns altos dignatários da cúpula do Vaticano.
Negarmos o papel positivo que as religiões tiveram e têm no voluntariado e na formação das pessoas ao longo dos séculos é vermos só com um olho. Por exemplo, a seguir à descolonização quem assegurou em África as condições minimas foram padres e freiras que lá ficaram.
Noto também que muitos ateus que escrevem por ai têm uma atitude muito radicalizada na forma e no conteúdo para a qual não encontro explicação. Que tolerância é esta? Será que daqui a uns anos perseguir-se-á quem acredita?
E já agora, em que é que os ateus se baseiam para acreditar também que não existe Deus? Não estarão eles próprios a cometer o mesmo "pecado" dos crentes? Para finalizar uma pequena provocação. Não acredito no ateismo puro. Mais tarde poderei explicar porquê mas por agora não me alongo mais...
Um Abraço
Anónimo disse…
Rui Luzes Cabral:

Agradeço o seu comentário, sereno e benevolente, mas não posso corroborá-lo.

Como sabe, as três religiões do livro mandam matar os homossexuais, por exemplo. Os infiéis são outros com a cabeça a prémio. Já não falo dos que comem animais do mar sem escamas!!

Certamente não acredita que as Cruzadas se devem a uma deficiente interpretação da Bíblia ou a Jihad islâmica a um deficiente conhecimento do Corão.

Pode apenas dizer que a Reforma e a Revolução Francesa introduziram factores de tolerância no cristianismo. Aliás, o direito romano e a cultura helénica são a raiz da tolerância que a Igreja católica não pratica onde é hegemónica. O mesmo se pode dizer do protestantismo evangélico que influenciou os neocons americanos.
Rui Luzes Cabral disse…
Caro Carlos Esperança

É obvio que tem razão no que diz em muitas situações e eu também corroboro a análise de que os homens que seguem e mandam nas várias religiões cometeram atrocidades no passado, e alguns continuam a fazê-lo e eu no meu comentário não neguei nada disto. A essência das religiões no entanto não está só em quem as pratica mas sim em toda a dinâmica que vai desde os livros que as sustentam, passando pela hierarquia e pelos fiéis e acabando na sociologia comunitária inerente a cada período histórico. Ou seja, não podemos julgar a religião de forma autónoma de todos os outros agentes da história. E também não a podemos afastar do mundo moderno só pelo que foi de mau no passado pois isso é ilógico e contraproducente. Assim como não podemos dizer que o comunismo é só a morte de milhões de pessoas, que o PSD não pode regressar mais ao poder depois da experiência de Santana Lopes, que uma pessoa que comete um acto irreflectido não tem mais direito a regenerar-se ou que por existirem políticos corruptos são todos iguais.

Aliás, e falando agora na religião católica, é bom que discutamos não só o tempo das cruzadas ou da inquisição mas façamos uma análise ao que de bom deu e dá à sociedade e ao que ela é depois do Concilio Vaticano II.

Discutamos sem meias palavras mas com as palavras certas na forma e no conteúdo para não darmos a ideia que perseguimos de forma obcecada sem nos preocuparmos com a veracidade do conteúdo. Só se eu fosse tolinho é que tentasse branquear os erros do passado ou do presente e a discussão é salutar para esclarecermos excessos e para tentarmos melhorar para o futuro e nesse aspecto julgo que a Igreja Católica de hoje é responsável e atenta, embora tenha ainda que limar muitas arestas. Eu sou o primeiro a sabe-lo e a apontá-lo. Quanto ao caso dos homossexuais e outras situações que diz que vem nos livros, não é bem assim pois temos que ter em atenção a época em que aqueles textos foram escritos. Tudo é filho da época em que nasce. Mas a Igreja hoje não condena os homossexuais enquanto pessoas. O que ela condena é o acto em si, assim como condena outros actos que considera menos correctos. E convenhamos que se a igreja admitisse o divórcio (que em algumas situações admite), a homossexualidade, as relações pré matrimoniais, seria mais uma associação de bairro e isso nem por isso seria sinónimo de modernidade, embora esta questão de sabermos o que é a modernidade, ou a pós modernidade seja em si mesma discutível. Mas se quer encontrar uma solução de tolerância na Bíblia posso indicar-lhe muitas, só para citar duas aquela em que Jesus é abeirado por uma prostituta e não a julga dizendo que quem não tiver pecados atire a primeira pedra (Jo 8, 1 – 11) e a outra dum homem espancado na beira da estrada que é assistido não por um sacerdote ou por um levita mas por um samaritano (Lc 10, 29 – 37)

Se ler Bento Domingues, António Couto, Carreira das Neves, Anselmo Borges, José Policarpo, Manuel Martins, Carlos Azevedo, Manuel Clemente e outros, de certo que terá uma nova opinião sobre a nova igreja, só para citar portugueses.

O que me chateia um pouco é que andando pela net e encontrando sites a divulgar (e muito bem) o ateísmo, isso se faça não à custa de ideias próprias mas sim chacoteando simplesmente quem acredita. Sou admirador de Álvaro Cunhal e de Mário Soares e nenhum deles necessitou ou necessita de acreditar, contudo sempre respeitaram a ideia benigna dos outros.

O que eu desejava é que houvesse mais serenidade e mais sensatez quando nos “confrontamos” no campo das ideias. Pelo menos nós, homens de agora, pois é de nós que o mundo de hoje precisa. Precisa que sejamos bons e justos, independentemente do nosso clube, da nossa religião, da nossa disposição.

Deixo aqui na conclusão deste meio já extenso comentário um extracto da “Santa Missa «Pro Eligendo Romano Pontifice», Homilia do Cardeal Joseph Ratzinger, Decano do Colégio Cardinalício” que na Segunda-feira 18 de Abril de 2005, antecedeu a entrada dos Cardeais na Capela Sistina aquando da escolha do novo Papa.

“Quantos ventos de doutrina conhecemos nestes últimos decénios, quantas correntes ideológicas, quantas modas do pensamento... A pequena barca do pensamento de muitos cristãos foi muitas vezes agitada por estas ondas lançada de um extremo ao outro: do marxismo ao liberalismo, até à libertinagem, ao colectivismo radical; do ateísmo a um vago misticismo religioso; do agnosticismo ao sincretismo e por aí adiante. Cada dia surgem novas seitas e realiza-se quanto diz São Paulo acerca do engano dos homens, da astúcia que tende a levar ao erro (cf. Ef 4, 14). Ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, muitas vezes é classificado como fundamentalismo. Enquanto o relativismo, isto é, deixar-se levar "aqui e além por qualquer vento de doutrina", aparece como a única atitude à altura dos tempos hodiernos. Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que nada reconhece como definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades.”

Um Abraço
Anónimo disse…
Rui Luzes Cabral

Ao ler a sua réplica senti o mesmo desconforto e sedução com que leio Bento Domingues, Anselmo Borges, o bispo Manuel Martins e, às vezes, o patriarca Policarpo.
A Igreja católica tem tido exegetas que, ao dizerem que a Bíblia diz o que não diz, a coloca na vanguarda da tolerância e a faz parecer herdeira do Iluminismo e um farol da democracia.
Não é o passado das instituições que julgo e, muito menos, o das pessoas que nelas acreditam. O que me preocupa são as afirmações que atribuem a Deus e, portanto, imutáveis e o proselitismo que devora os seus dignitários.
Não posso acompanhá-lo na benevolência com que se refere ao professor Rätzinger que, ao considerar o catolicismo a única religião verdadeira, acicata o antagonismo de todas as outras. Não o acompanho na consideração por um Papa que ao canonizar vítimas da guerra civil espanhola, às centenas, mais não faz do que ajustar contas com os que se bateram do outro lado da barricada e toma partido na luta partidária que se desenrola na Espanha democrática de hoje.
Não posso, sobretudo, absolver quem, à sorrelfa, faz as pazes com a Sociedade de São Pio X, de Mons. Lefebvre, e regressa ao latim, depois de uma longa carreira à frente da Prefeitura da Sagrada Congregação da Fé onde ajudou a banir os teólogos progressistas e incómodos.
Se outras razões de crítica não tivesse, bastava a quantidade de milagres que a Igreja católica arranja para a desacreditar à luz do que eu julgo o mais elementar bom senso e o mínimo de respeito pela inteligência alheia.
No entanto, se a Igreja católica, ou outra, forem perseguidas terão a minha empenhada e activa siolidariedade. Só não posso aceitar como séria a atitude do cardeal Bertone a queixar-se, em Fátima, da falta de liberdade da Igreja católica, quando os quatro canais de televisão registavam devotamente a «denúncia», em directo.
Posso estar enganado mas não devemos à Igreja, a nenhuma Igreja, as sociedades laicas e tolerantes em que nos inserimos na Europa que tenho por modelo. E não sou ingrato ao ponto de esquecer António Ferreira Gomes, Sebastião Resende e alguns padres que a hierarquia execrou enquanto se mancumunava com a ditadura salazarista.

Creio que já me alonguei, sem manter uma linha de rumo nas críticas, tantas e tão profundas razões de queixa tenho da actual hierarquia católica numa postura mimética que rivaliza com a intolerância do Islão sem chegar à violência terrorista, à xenofobia, anti-semitismo e crueldade que sai das páginas do Corão e da demência dos mullahs.

Desejo-lhe uma boa noite.
Anónimo disse…
Desculpe que lhe diga mas quando diz que as religiões provocam a violência, tal só é verdade no Ocidente, e mesmo assim elas são na verdade justificações para uma violência que tem outras causas.
As religiões Orientais convivem em paz, sendo muitas vezes não exclusivas de outras: budistas, hinduistas, confucionistas, chinesa animista, xintoísta, etc. sempre conviveram bem umas com as outras, não havendo violência entre elas. Foi só com a chegada do cristianismo e do islão ao Oriente que a violência religiosa contaminou o extremo oriente, logo as religiões que nasceram no médio oriente têm algo a aprender com as do extremo oriente (a menos que não classifiquemos as religiões dessas paragens como tal mas como filosofias de vida).
Finalmente, o ateísmo tb não evitou a violência, basta lembrar as purgas soviéticas. O ateísmo, tb ele nascido no Ocidente é intolerante e provoca a violência, tentando converter os seguidores das outras religiões à sua, pela força se necessário.
Anónimo disse…
Anónimo:

Partilho alguns pontos de vista consigo mas há um em que sou radical: a exigência da não confessionalidade do Estado.

Um Estado ateu é, de algum modo, um Estado confessional. O ateísmo de Estado é tão perverso - e viu-se - como uma teocracia.

O Estado deve ser neutro e os seus detentores não podem confundir os deveres de representação que lhe estão confiados com as suas convicções pessoais.

O PR ou o primeiro-ministro não devem, nessa qualidade, ir a uma procissão ou a um encontro nacional de ateus.

É assim o laicismo - a única forma de garantir qualquer crença, descrença ou anti-crença a que todos temos direito.
Anónimo disse…
ó Esperancinha... ainda bem que você não é ninguém, ou melhor, é ninguém, pois caso contrário sei eu bem que faria sempre a guerra e estaria sempre a destilar ódios (AJJ)... ehehehe

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