Tratado reformador da UE, participação dos cidadãos, directiva Bolkenstein e outros demónios



Rios de tinta correm em todos os países europeus sobre o tratado reformador da UE, sobre o défice de participação dos cidadãos na União Europeia, sobre o conteúdo social do tratado "neo-liberalizante", etc.

Comecemos por nos interrogar sobre o alegado défice democrático da União. Será que ele existe? Ora vejamos. O processo de tomada de decisão na UE envolve três instituições:
1) o Conselho (que consiste nos governos dos 27 estados membros, governos esses democraticamente legitimados pelos cidadãos dos estados respectivos);
2) a Comissão (nomeada pelo Conselho e aprovada pelo Parlamento Europeu);
3) o Parlamento Europeu (eleito directamente pelos cidadãos).

Onde está então o défice democrático e a falta de participação dos cidadãos? Parece-me algo muito empolado pelos mídia eurocépticos.

Outra questão interessante consiste na ausência de aprofundamento dos direitos fundamentais e dos direitos sociais no acervo jurídico da UE. Ora, a sua não inclusão é bastante óbvia: todos os estados membros da União são Estados de Direito, mas nem todos são Estados de Direito Social.
Reino Unido, Irlanda, Eslováquia, Estónia, Letónia, Lituânia, Polónia, e talvez ainda outros, não estão interessados nos espartilhos do Estado Social, alguns por motivos de ordem filosófico-política (o utilitarismo que vinca profundamente a ordem jurídica e política dos países de tradição anglo-saxónica), outros por estarem em processo de desmantelamento do seu recentemente pretérito "socialismo real", bastantes por temerem os custos económicos de adaptação (os compliance costs) inerentes à adopção de uma política de elevada protecção social.

Por muito que nos possamos interrogar sobre se a maioria dos estados membros que erige o Estado Social como pilar da sua sociedade não se deveria impor à minoria que lhe é adversária, o pragmatismo inerente a uma negociação a 27 obriga a União a procurar o mínimo denominador comum. Uma lamentável evidência.

O leitor E-pá mencionou a directiva Bolkenstein. A célebre directiva "Bolkenstein", a directiva 2006/123/EC, do Conselho e do Parlamento Europeu, acho que foi demasiado diabolizada durante a campanha do referendo francês, de forma particularmente soez e xenófoba (lembremo-nos do canalizador polaco, oxalá tivéssemos mais canalizadores polacos e menos Kasczysmo polaco). Não se trata de uma directiva "neo-liberal", mas tão somente um instrumento de concretização de um dos princípios fulcrais da União Europeia: a livre circulação de serviços (a par da livre circulação de trabalhadores, mercadorias e capitais), a não ser que fortes razões de interesse público (que terão que ser proporcionais) o impeçam.
O que a "directiva Bolkenstein" consagra é o princípio segundo o qual o regime jurídico de qualificação, homologação do prestador de serviços, e condições de prestação do serviço, seja o do país de origem. O que tem a sua lógica.
Imaginemos o seguinte caso: eu quero construir em Portugal um edifício, de acordo com o projecto de
um reputado arquitecto estónio, X. Procurando em toda a Europa um construtor com o know-how específico para levar a cabo a empreitada, decido que o empreiteiro que me apresenta a melhor
relação custo-benefício é a empresa Y, sita na Áustria. Finalmente, decido recorrer ao apoio jurídico de Z, advogado holandês, o melhor especialista europeu em direito da construção. E finalmente, descubro que a empresa mais adequada para os projectos de especialidade de canalização e saneamento é a empresa polaca P.
Assim sendo, a legislação aplicável ao arquitecto X é a legislação estónia, à empresa Y a austríaca, ao advogado Z a holandesa e finalmente à empresa P, a polaca.
Ora, esta directiva, tendente a criar um mercado comum dos serviços, não é nenhum demónio neo-liberal. Se temos um mercado comum, que é um dos principais objectivos da UE, é para o levar a sério, e demolir as barreiras proteccionistas, que tendem a privilegiar apenas os interesses de alguns em detrimento dos interesses do todo. Até porque esta directiva torna atraente o emprego de prestadores de serviços de países com custos operacionais menos onerosos, geralmente países menos ricos, aí gerando prosperidade, o que revela também preocupações sociais, bem como uma contrapartida às externalidades causadas pela livre circulação de capitais (lembremo-nos da esmagadora maioria das empresas dos países de leste, adquiridas a esmo por países ocidentais). Se uma empresa portuguesa de prestação de serviços trabalhar numa empreitada noutro país europeu, alguém em Portugal a acusará de "dumping social"?

Obviamente que um francês de classe média baixa, bem pago e com uma reforma assegurada, se preocupará com a concorrência do canalizador polaco. Da mesma forma que aplaude a aquisição por grupos financeiros franceses de grandes grupos económicos e financeiros no leste da Europa (por exemplo a aquisição da construtora automóvel Dacia pela Ranault), e que aplaude o facto de ter gasolina e gás mais barato graças aos negócios dúbios (que já envolveram, por exemplo, emprego de trabalho escravo na Birmânia) da TotalFinaElf no terceiro mundo. Com a directiva Bolkenstein, o mercado comum, quando nasce, é para todos, não só para servir a parte mais forte e mais próspera. Serve a mais competitiva e a mais inovativa, uma vez que a prestação de serviços envolve normalmente menores necessidades de capital fixo, assim podendo favorecer David face a Golias.

O ideal seria que todos os países da UE tivessem o mesmo nível de vida, a mesma elevada protecção social, os mesmos cuidados de saúde, os mesmos salários e a mesma carga fiscal. Infelizmente não é (ainda) assim. Até lá, teremos que continuar a luta pelo progresso social. "Passo a Passo, Golpe a Golpe" citando o poeta espanhol António Machado. E por isso, o tratado reformador, imperfeito que seja, é um passo em frente.

Comentários

Anónimo disse…
E se a Irlanda que é obrigada constitucionalmente a referendá-lo o rejeitar?

Não seria melhor organizar um referendo europeu envolvendo todos os Países, mas não as nacionalidades.

Isto é, votávamos na qualidade de europeus e ia tudo para o mesmo saco.
Depois, desse saco comum, saltavam os resultados globais...
Rui Cascao disse…
A ideia é muito interessante, e sem dúvida seria um mecanismo muito interessante numa "constituição europeia"... Talvez em 2084 :)

Eu sou pessoalmente pouco adepto da democracia referendária/plebiscitária e mais adepto da democracia representativa. Entendo que deverão ser especialistas a debater assuntos especializados.

A Irlanda é um dos países que mais ganhou com a adesão europeia, um dos mais gratos, e um dos que mais lucra com a integração europeia. Na Irlanda, não existe uma obrigação de referendar tratados internacionais, mas sim de plebiscitar alterações à constituição emergentes de um tratado (Art. 46 e 47 da Constituição Irlandesa), o que poderá ser o caso do tratado reformador. No entanto, tradicionalmente os resultados dos plebiscitos referentes à incorporação de novos tratados da CEE/UE têm sempre sido favoráveis (10ª emenda, adesão ao Acto Único Europeu em 1987; 11ª Emenda, adesão ao Tratado da União Europeia em 1992; 18ª Emenda, adesão ao tratado de Amesterdão em 1998; 26ª Emenda, adesão ao Tratado de Nice, 2002.
e-pá! disse…
Caro Rui Cascão:

Não partilho da sua complacência em relação à Directiva Bolkenstein.
Em primeiro lugar defendo para a Europa várias vertentes - uma delas e quiçá não menos importante - a "Europa Social".
A directiva, sejamos directos, propõe o nivelamento por baixo desses "direitos sociais".
Sem uma prévia concertação desses direitos entre todos os países membros da UE, essa directiva, vai ferir direitos dos trabalhadores, utilizadores e consumidores.
Não concebo os serviços como simples mercadorias. Os serviços têm um pesado componente humano incorporado.
Portanto, repugna-me a concepção que seja o mercado (per si) a regular os serviços. O que iriamos observar era a vinda de trabalhadores onde a regulamentação do trabalho ou não existe, ou é embrionária.
Um pouco o que se observa em termos de regulamentação social e de trabalho entre a Europa e, p. exº., a China.
Só que estas questões seriam vividas dentro da própria Europa. Isto não me parece ser competitividade.
Se houve uma regulamentação para o dinheiro (o espaço euro), em meu entender deverá também haver uma harmonização social.
Caso contrário a Europa servirá prioritáriamente os ricos. E, como corrolário subeijamente conhecido, os pobres ficarão mais pobres.
Não consigo "dourar" a pílula. Para mim, a directiva Bolkenstein, fundamenta-se na doutrina política neo-liberal. Mais, viola os tratados de Roma I e II.
E remato com uma outra grande preocupação. O que sucederia aos serviços públicos? Iam nesta avalanche de mercado? A valorização profissional dos trabalhadores ficaria também entregue ao mercado?

Acho a integração europeia de Portugal uma inevitabilidade (social,económica, cultural, ...) e o nosso destino histórico.
Mas como português e europeu se fosse chamado a pronunciar-me sobre um documento que integrasse as concepções da directiva Bolkenstein, votava CONTRA!

Por outro lado, devo reconhecer, há muitas coisas que estou de acordo no seu post.
Considero que dirimir divergências faz caminhar a Europa.

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