Carminho & Sandra

Carminho senta-se nos bancos almofadados do BMW da mãe. Chove lá fora. Encosta o nariz ao vidro para disfarçar duas enormes lágrimas que lhe rolam pela face. A mãe conduz o carro e aperta-lhe ternamente a mão. Há muito trânsito na Lapa ao fim da tarde. A mãe tem um olhar triste e vago mas aperta com força a mão da filha de 18 anos.

Estão juntas. A caminho de Espanha.

Sandra senta-se no banco cor-de-laranja do autocarro 22 que sai de Alcântara. Chove lá fora. Encosta o nariz ao vidro para disfarçar duas enormes lágrimas que lhe rolam pela face. A mãe está sentada ao lado dela.Encosta o guarda-chuva aos pés gelados e aperta-lhe ternamente a mão. Há muito trânsito em Alcântara ao fim da tarde. A mãe tem um olhar triste e vago mas aperta com força a mão da filha de 18 anos. Estão juntas. A caminho de casa de Uma Senhora.

O BMW e o autocarro 22 cruzam-se a subir a Avenida Infante Santo.Carminho despe-se a tremer sem nunca conseguir estancar o choro. Veste uma bata verde. Deita-se numa marquesa. É atendida por uma médica que lhe entoa palavras doces ao ouvido, enquanto lhe afaga o cabelo. Carminho sente-se a adormecer depois de respirar mais fundo o cheiro que a máscara exala. Chora enquanto dorme.

Sandra não se despe e treme muito sem conseguir estancar o choro. Nervosa, brinca com as tranças que a mãe lhe fez de manhã na tentativa de lhe recuperar a infância. A Senhora chega. A mãe entrega um envelope à Senhora.

A Senhora abre-o e resmunga qualquer coisa. É altura de beber um líquido verde de sabor muito ácido. O copo está sujo, pensa Sandra. Sente-se doente e sabe que vai adormecer. Chora enquanto dorme.

Carminho acorda do seu sono induzido. Tem a mãe e a médica ao seu lado. Não sente dores no corpo mas as lágrimas não param de lhe correr cara abaixo. Sai da clínica de rosto destapado. Sabe-lhe bem o ar fresco da manhã. É tempo de regressar a casa. Quando a placa da União Europeia surge na estrada a dizer PORTUGAL, Carminho chora convulsivamente.

Sandra não acorda. E não acorda. E não acorda. A mãe geme baixinho desesperada ao seu lado. Pede à Senhora para chamar uma ambulância. A Senhora não deixa, ponha-se daqui para fora com a miúda, há uma cabine lá em baixo, livre-se de dizer a alguém que eu existo.

A mãe arrasta a Sandra inanimada escada a baixo. Um vizinho, cansado, chama o 112 e a polícia. Sandra acorda no quarto 122 dias depois. As lágrimas cara abaixo. Não mais poderás ter filhos, Sandra, disse-lhe uma médica, emocionada.

Sai do hospital de cara tapada, coberta por um lenço. Não sente o ar fresco da manhã. No bolso junto ao útero magoado, a intimação para se apresentar a um tribunal do seu país: Portugal.Eu voto sim. Pela Sandra e pela Carminho. Pelas suas mães e avós. Por mim.

a) Rita Ferro Rodrigues

Nota: Este belo e comovente texto acabou de me ser enviado por um amigo. Daqui a um quarto de hora terminará a campanha. Respeitarei, como sempre, a lei, à espera de que outra lei, injusta e que se não cumpre, seja revogada. Depende de cada um de nós.

Comentários

osso disse…
coitados daqueles que sandra e carminho traziam cada uma em seu ventre!
coitadas da sandra e da carminho pois não sabem o que fazem!
coitadas da sandra e da carminho que ainda viverão amarguradas pelas suas decisões.
contrariamente àqueles que mal lhes fizeram.

voto NÃO, pois penso nos indefesos.
voto NÃO, pois penso em muitas mulheres como a carminho e a sandra.
voto NÃO, porque não quero que aqueles que vivem opurtunamente das debilidades da sandra e da carminho!
voto NÃO, pois não quero que nos tirem mais a alegria das crianças apenas e simplesmente porque sim.
voto NÃO, porque quero alterar a lei (assim o eng. socrates o deixe) para punir e perseguir os oportunistas.

simplesmente voto NÃO porque todos temos o direito à vida.
Anónimo disse…
Porque não se trata de campanha:

http://margensdeerro.blogspot.com/2007/02/correco.html

"Um leitor"
Mano 69 disse…
É um texto de fino recorte literário.
Eu diria mais, mais!

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